O arroz de pato e duas artes que rareiam
Tenho ao meu lado quatro cavalheiros discutindo gravemente
os filetes de pescada, os arrozes de pato, os enchidos da casa tal, se o frango
é caseiro ou se não é, e que se não é logo o resto fica desengraçado, diz-se O
melhor filete do Porto é em tal sítio, outros dois aprontam-se a contestar que
Isso dizer-se uma coisa assim é preciso cuidado e um terceiro, num aparte, com
peso, com filosofia mesmo, suspendendo o cálice de moscatel a meio caminho da
boca, vai que Um filete tem muito que se lhe diga, ao que o primeiro concede,
refere uma matemática sobre a legitimidade de se afirmar algo como o que acabara
de afirmar, Só conhecendo 100 sítios, só aí se dirá Em tal sítio come-se O Melhor
Filete do Porto, mas logo acrescentou, num misto de humildade e desafio, Mas
isto dizem-me os meus colegas do Porto, não sou eu que o digo, do Porto
percebem eles, e em torno da mesa, de par com uns goles breves nos copinhos de
branco, corre um murmúrio de reconhecimento e pacificação. Seguiram ainda retomando
a questão dos arrozes, O arroz-primavera de tal sítio é muito bom, ao que outro
atira Arroz de pato só como um, o da minha mulher, que o faz como o fazia a
minha mãe e a mãe dela, ali tudo é uma coisa só, diz assim Tudo é uma coisa só,
e nisto foram seguindo por mais algum tempo, cada um trazendo à mesa, entre sons
de pés de cálice batendo no tampo da mesa e de rodas de automóveis a rolar na
calçada e de gritinhos entrecortados de duas crianças doutra extrema da esplanada,
sob a cadência certa de uma chuva fria que entranha e que mói os menos
acostumados, trazendo cada um, dizia, a sua parcela de gosto e saber sobre uma
coisa tão aparentemente desimportante como uma travessa de arroz de pato, mas
que, bem feitas as contas, é afinal uma reunião de duas artes milenares, quiçá
em risco de extinção, a Gastronomia e a Conversa. E ouvi-los e observá-los é
delicioso e reconfortante como partilhar com justos uma mesa quente de arroz de
pato num dia de chuva e frio.
🜲