Antero Power
Porque o título introduz o texto e porque este fala por si, refiro apenas que esta é uma transcrição do texto IV de Antero de Quental - Prosas Sócio-políticas/publicadas e apresentadas por Joel Serrão/Colecção Pensamento Português/Imprensa Nacional - Casa da Moeda/Abril de 1982. Hope you enjoy and learn something with it.
"O que toda a gente vê
ou a política numa lição
Um dia um certo número de indivíduos reúnem-se na praça pública:
Concorre a gente.
E começam a gritar:
A gente apinha-se.
Uma terça-parte garotos e vadios,
Outra, mulheres,
O resto, gente que vem ver - para rir - julgando que serão bêbados.
Ora um destes indivíduos sobe aos ombros dos outros e diz:
- O Povo geme! -
A multidão agita-se.
- A Liberdade é um direito santo!! -
A multidão freme.
- O Povo quer ser livre!!! -
A multidão urra.
- Derrubemos os tiranos!!!! -
A multidão rui.
Ora, outros indivíduos estão reunidos numa grande casa e dizem:
- O povo geme -
Logo, aumentem-se 5 por cento.
- A liberdade é um direito santo -
Logo, venha a censura.
- O povo deve ser livre -
Logo, triplique-se o exército
etc. etc. etc.
Outros aplaudem, e um copia estas falas num grande papel, que se imprime, consta, que para desfeitear a gramática.
Há quem boceje.
Enquanto isto se passa, o rumor dos homens da praça aproxima-se: os da casa, ouvindo-os fecham as portas; os outros bramem fora.
Nisto, outros homens vestidos de furta-cores apresentam-se e marcam passo.
Depois, ao toque dum instrumento de latão, e caindo sobre os outros, disparam vários tiros para o ar.
Alarido e confusão.
Temos aqui dous casos a considerar.
Se os primeiros levam a melhor neste exercício, abraçam-se uns e outros, grita-se muito, consome-se mais vinho; surgem Demóstenes, saqueia-se, arromba-se.
- E diz-se que o Soldado fraternizou com o Povo em nome da liberdade: viva o Povo e o Soldado! -
Há luminárias no Palácio da Câmara Municipal.
Os homens da casa grande evacuam a sala: os da praça tomam-lhes os lugares e começam a entrar na grande via das reformas.
Do seguinte modo.
- O povo gemeu -
Logo, aumentem-se 10 por cento.
- A Liberdade foi um direito santo...-
Logo, venha a censura e a multa.
- O povo deve ser livre -
Logo, tripliquem-se o exército e os cabos da polícia.
Outros copiam e imprimem, para pregar uma peça à gramática e ao senso comum.
Muita gente dorme; alguns ressonam.
Se os segundos (os da casa) levam a melhor, então passam-se as cousas dum modo muito diferente.
Arromba-se, saqueia-se, surgem Demóstenes, consome-se mais vinho, grita-se muito.
Os da casa dizem: «o Governo destruiu as 100 000 cabeças da hidra fatal da anarquia: fez reinar a ordem como convém a um governo forte, amante duma bem entendida liberdade: viva o Povo e o Soldado!» -
Além de tudo isso:
Põe luminárias o Palácio da Câmara Municipal.
Ora, no primeiro caso, os homens da casa grande vão para a praça pública.
E dizem:
- O Povo geme! -
- A liberdade é um direito santo! -
etc. etc. etc.
Apinha-se gente; vêm os furta-cores; tiros no ar; alarido e confusão.
Se são vencidos diz-se: - Reina a ordem em despeito da anarquia: viva o Povo e o Soldado! -
Se o contrário - A Liberdade derrubou ainda mais uma vez a fortaleza da infame tirania: viva o Soldado e o Povo! -
etc. etc. etc. e assim seguidamente.
Ora, a tudo isto se chama Ciência Política, ou arte de administrar os interesses gerais.
Em proveitos dos próprios."