Um libertinóide passeia por Oeiras

Arribo ao Cais do Sodré ainda tarde. Olho uma tabuleta de dígitos verdes ao cimo das escadas enrolantes. Calha-me em sorte um comboio em vias de zarpar, coisa a tardar um tudo de nada, melhor era prescindível. Hora de zarpanço: 10:20, isto posto assim aqui como posto estava lá, e com lá à tabuleta me refiro. Diz-me ainda a electrónica da dita-cuja, prestável a dar com um pau, que pelas dez e quarenta e tal estou em S. João. Porreiro, pá, nasalo eu pròs meus botões a escarnir secretamente do senhor primeiro-ministro – secretamente!, pra quê? A aparelhagem bruta de câmeras de gravar som e imagem que me persegue já desde o Campo Grande (e que me acompanhará ao longo da linha de comboio de toda a Linha no comboio e, ainda, ao regresso) mete-me nojo, dá-me gases, estou mesmo bom é pra me atirar às fuças de qualquer sócrates que me apareça à frente, algum que fosse dessa canalha da AR, desses corsários de gravata, porra! que, juro, lhes limpava o sebo! – isto tudo escapou-se-me, na fúria, em voz alta, em pleno apeadeiro. Dou então por que já tenho uma micro audiência composta por um com ares de indiano que, plo que vejo, é vendedeiro de pensos rápidos, e um reformado barrigudo de tempo-livre. Não sei se me vêm como palhaço de circo, se como profeta da Nova Ordem, tal é a ambiguidade daqueles quatro olhinhos, mas já sigo discursando, inflamado e inflado, com o dedo espetado a uma câmera por cima de mim, - Caixinhas ciclópicas, ameaçadoras na vossa indiferença maquinal, agentezinhos governamentais secretos, paranóicos e paranoitizantes, prosaicamente aqui dependuradas plo nosso superior interesse, pla nossa sagrada segurança, sim sim, aperte a corda, senhor presidente, estique o elástico, senhor ministro, que isto um dia as gentes, a uma só voz, lhes cortarão as infâmes goelas!
É num fundo de aplausos que estugo o passo para a carruagem que já dá os primeiros espasmos do arranque.
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Nisto já passo Algés. À minha frente, a pouco mais de metro e meio, um homem estrangeiro toca concertina num xinfrim de arrepiar, azar nada costumeiro no que a esta classe artística muito específica de Músicos de Transportes Públicos diz respeito, mas, porra, este ainda não tocou nada que se dissesse benza-te deus. Ao passar Santos, se não me engano, era uma marcha lisboeta perfilada em medley com uma modinha brasileira. Agora que, com a Cruz Quebrada emoldurada nas janelinhas da composição, está aqui ao pé de mim a abanicar o baldito das esmolas lá do alto de quem está de pé, eu, cá do baixo de quem está abancado, só me apetece dizer-lhe – O meu amigo acha que, pla real merda que nos fez ouvir, merece sequer umas pretas?, mas ele não ia perceber, parece-me. De resto, acaso percebesse e, vá, lhe desse prà violência, era lixadote para mim: porque, estando sentado, não tinha como me desviar da concertina, instrumento de tamanho considerável e arestas vivas do melhor que há em termos de capacidade de lascar sobrolhos. De molde que já lhe menti, já lhe disse que não tinha trocados, já ele seguiu, com um ronco de contrariedade, prò banco de trás, ouço agora o tilintar dos ouros a bater no fundo do copinho suspenso e penso - Queres ver que até aqui nestes meios onde a música só leva recompensa se for boa à séria já se premeiam os medíocres, estamos desgraçados.
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Já me apeei em Oeiras. Num estalar de dedos dos pés, faço do comboio máquina do tempo e eis-me com quinze, dezasseis anos a caminho do Liceu. Ali, ao fundo da rampa, o mesmo perneta cego a repetir mecanicamente a ladainha do - Tenha a bondade de me ajudar com a sua esmola, por favor; acolá, à entrada do café da estação, aquela que faz tempo baptizei de Maria Caxuxa, fadista de corpo, se o é de alma já não sei, feia como uma bota da tropa, ainda e sempre a meter-se com os funcionários das bilheteiras, feita rata – e já subo a rampa que dá para o lado da Fundição que já não é de agora que não funde coisa nenhuma, e logo me cruzo com um, salvo erro, Hugo, antigo regente dos áureos tempos do saudoso mirc (grafava-se mIRC). Respondia pelo nick de Diabo, ou Diablo, ou coisa que o valha, era uma espécie de lorde, de barão daquelas andanças, - Gosto em ver, essa vida, Cá andamos, e terréu-téu-téu, pardais ao ninho, conversa de ir ao cu ao passarinho, por mais que eu não queira renegar algum passado ou meter a máquina do tempo em pausa é complicado: este gajo aqui à minha frente já não me seduz como antes seduzia, agora que o olho com a mesma t-shirt de antes, com uns diferentes quilos de antes, revisão em alta, com, dou conta agora, a mesma falta de essência de antes, mas eis que me recordo da praia, da inconsciência de então, imagens passam-me à frente enquanto a passadeira me passa por baixo e já o Hugo me apertou a mão e foi-se embora, - Gosto em ver, Até à próxima, e já eu subo o passeio antes da esquina da Rua Álvares Cabrão com a Rua do Liceu, e já a máquina do tempo recomeçou a funcionar, psóin óin (efeitos especiais a condizer), tenho dezasseis anos de idade.
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Desocupado, despreocupado, não tenho horários ou noção de horários, sequer noção de que há quem tenha horários ou, mais giro, do que são noções de coisas, se as coisas em si ou se projecções criadas por força de mera administração cerebral, burocracias sinápticas, se lhe quisermos dar nome, coisa aliás do mais perigoso que há essa de dar nomes a tudo quanto é coisa, aí temos anos e ânus de história e estórias para no-lo atestar, ainda que com sombra para dúvida.
Entrei na escola, cruzei o longo pátio austero com o imponente edifício em frente, toda aquela arquitectura salazarista, todas aquelas meninas acolá nos degraus, estou a fisgar um papel que me diz calado que só daqui por trinta e cinco minutos é que vou poder entrar na secretaria sem forçar a fechadura, dou meia-volta, aproveito e dou nova mirada às moças casadoiras que galhofam na escadaria da entrada, - Isto já dizia o outro que só em tempo de guerra é que cada buraco é trincheira, e eu nem aos outros desejo tamanhos males, comento sem um som.
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Já estou de novo no portão da escola, já subo a rua ao contrário da descida de há uns minutos, - Visto de cabeça para baixo descia agora, tinha subido há bocado, penso eu empanturrado de ócio, e nestas merdafísicas noto que a inscrição toponímica está tapada com uns rabiscos ignóbeis que alguns apelidam de tags, - Bardamerda!, estes putos de hoje em dia são uns desgraçados, quase tanto como os de ontem, quase quase. Mas já esqueci os tags e os putos: aqui estou mirando este bandozinho de pitas que aí vem chegando. Em número de cinco, têm telefones móveis encastrados nas palmas das mãos, cabelos volumosos, caras assim-assim, duas delas até feiitas, coitadinhas, altura pouco menos que a minha, apesar de serem mais novitas que eu (mesmo não desligando a máquina do tempo, psuéun éun, mesmo tendo dezasseis anos). Já lá vão a boa distância, já me posso torcer a completar a avaliação: traços comuns, dois: rabos espalmados, um, excesso de carne nos flancos ao fundo das costas, dois. Anuncio um resumo do relatório final do encontro imediato de terceiro grau com a solenidade dum discurso do dia da raça (como ainda lhe chama o nosso chefe-maior, não sem um brilho no olhar) e com o desembaraço duma peixeira na praça ao público-júri que está dentro da minha cabeça sempre que o ponho lá, - Os peitos em geral fartos são, com muita pena minha, e de Vocelências estou certo que também, libertinos afamados que são, não tanto as promessas de tenras e fofas marmeladas, de lambozadas e húmidas chupações, mas, isso sim, um prenúncio cabal de decepcionantes corpos flácidos e informes no curto-prazo, já com boas carnes para a idade, sim senhor, mas nem por isso merecedores de grandes elogios, ainda que, estou certo que falo por todos nós aqui irmamente reunidos, numa palavra só, mamava-mo-las.
Aplausos por tudo quanto é sítio, duma orelha à outra, da penca à nuca, o meu crânio quase estala. Se aos dezasseis anos sou assim, no que me tornarei aos vinte e três, penso sorrindo, animado com a pilhéria.
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Precisado de mijar, busco um cantinho jeitoso prà coisa. Acolá ao fundo, para onde caminho a contrair a bexiga, junto ao estacionamento dos carros, não é nenhum luxo, não é o típico poste, a tradicional nespereira, mas é o que há cá e é muito bom. Com um suspiro de satisfação, já trocada a água às azeitonas, fecho religiosamente a braguilha, sempre receoso de entalar algum testículo no processo. Perdido nestas fobias, nem dei conta do par de velhas que vem do edifício dos reformados das Forças Armadas, emperiquitadas e cobertas de pó de arroz, dirigindo-se a este carro aqui ao lado, um Golf deste ano, - Vacas, tratam-se bem, hem?, ocorreu-me dizer, mas não disse, esbocei só um sorrisinho tímido, estilo - Ai desculpem-me as senhoras madamas, mais um poucochinho e salpicava-lhes o carrito com alguma pinguinha de xixi!
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(Ao cabo dalguns meses, decidi-me por não apodar este texto que agora publico de "Exercício de Escrita: Luiz Pacheco", não parindo assim o planeado embrião de mais um Exercício - plas razões óbvias, falhado (e nem por isso menos frutífero). Quedei-me portanto numa sensata referência no título da postagem, pequena, porém sentida, homenagem ao falecido Libertino)

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