Dez ânus depois

A denúncia da situação vivida actualmente em Timor-Leste feita por Loro Horta no Público (já faz uns meses...) é aterradora: elevadíssimas taxas de desemprego entre a população (de “80% em Díli”), um fenómeno crescente de prostituição infantil (“há homens que se deslocam nos seus carros e esperam perto das escolas”), entre outros, em curso paralelo com “ilhas de riqueza escandalosa, criadas pela recente bonança do petróleo” – sendo que a miséria de uns parece estar na razão directa da abastança doutros.
Diz Loro (o itálico é meu): “depois de 24 anos de violações e humilhações às mãos do Exército indonésio, as filhas de Timor vêem agora os seus próprios líderes e autoproclamados libertadores virarem-lhes as costas”. Não obstante o dispensável eufemismo acerca da acção dos actuais governadores timorenses – que igualmente violam e humilham –, julgo que Horta toca num dos pontos nucleares deste problema; isto é, quanto à continuidade do miserável estado de vida das gentes de Timor-Lorosae, mesmo após o fim do jugo indonésio.
Importa ver para lá da capa democrática pós-ocupação, para lá dos holofotes da mediática libertação timorense, para lá dos prémios Nobel; para lá, enfim, de toda essa treta kitsch que, nesta sociedade que se diz, para tanta coisa, «de resultados», ofusca, paradoxalmente (ou nem tanto), os resultados (reais) da mudança operada em 1999. Resumidamente, estão por apurar, na prática, as melhorias pós-re-independência.
Igualmente, é imperial não ocultar a pretérita ocupação portuguesa daquele território. As violações e humilhações de que falava Horta não são exclusivas do presente governo timorense ou do Exército indonésio. A este propósito, convém relembrar as descrições da exploração de mão-de-obra escrava na então colónia portuguesa, muitas delas referenciando, inclusive, o recurso a leprosos e outros desgraçados para as tarefas mais duras (1). Isto na década de 1920...
Dizia João Bernardo, nos idos de 92: “os capitalistas portugueses e os políticos de direito vêem agora, nos protestos contra o colonialismo indonésio em Timor, a oportunidade para se absolverem a eles próprios dos crimes e da miséria de que os timorenses foram vítimas quando o território era uma colónia portuguesa”. Parece certo que os capitalistas e políticos de hoje (grosso modo os mesmos de então; ou assim: muda o balde, a merda é a mesma) se movem numa dinâmica de reforço dessa desejada absolvição ao mesmo tempo que efectivamente a gozam.
Existiu em Portugal, há exactamente uma década, um autêntico (2) movimento popular contra a ocupação indonésia e a favor da independência timorense. Mas supor que tamanha nobreza e solidariedade tenha extravasado para as altas esferas da política e da finança é pedir demasiado (se o não é já crer que em verdade tal se tenha observado nas esferas “baixas”...).
Hoje, os jornais dão a conhecer um relatório da Amnistia Internacional que afirma que “a cultura de impunidade continua a assombrar o país”. E porquê? Porque “os responsáveis pelos maiores crimes cometidos entre 1975 e 1999, (...) ainda têm de ser julgados perante um tribunal credível”.
Esta manhã, na rádio, o silêncio absoluto acerca do pré-1975/pós-1999 foi igualmente contrastante com o patriótico e democrático sublinhar do período 1975-1999 (obviamente legítimo) feito pela AI e secundado pela imprensa escrita. Julgo que não será preciso esperar pela hora de jantar para confirmar se o mesmo se passará nas televisões. Este contraste, este diapasão, este branqueamento – são preocupantes.
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(1) Leia-se, por exemplo, “Ministros da Noite: livro negro da expansão portuguesa”, 1991, organizado por Ana Barradas.
(2) “Toda a gente fala da situação em Timor Muitos pra ganharem algo Muito poucos por amor”, Da Weasel, “Toda a gente”.

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