Game boy

Terça-feira quente. A Avenida da Liberdade, forrada de prédios a toda a altura, atapetada de carros a toda a largura, abrasa debaixo do sol tórrido de Agosto. A atmosfera densa alia-se ao calor e traz os transeuntes transpirando. O barulho é rei todo-poderoso.
A um par de metros de um banco borrado pelos pombos, na berma de uma das transversais da grande via, junto de um espaço livre entre dois carros, um janota de sua vintena de anos aguarda placidamente. Traja com brio, conforme o costume do sítio e da época. Jeans escuras de cintura ultra-descaída a exibir as cuecas e com a longa costura da perna a descrever um uu para a zona interior da canela, onde a calça afunila e cinge o tornozelo, mas sem bainha que se veja, à laia de fole. Ténis de pano e sola rasa, de marca conceituada; como, de resto, tudo quanto traz no corpo: a t-shirt à boys band, o relógio de grossa bracelete de pele, os estupendos óculos-de-sol, tudo a rebrilhar. A chave daquela expectante e curvada figura jaz-lhe entre os dedos: um vistoso – informei-me entretanto – Gameboy Advance.
Ao ruído próximo de um automóvel, o mariola move-se lentamente. Desprende uma das mãos da maquineta e gesticula vagamente. Parece fazê-lo para a mulher que se esmera por aninhar o seu Fiat naquela inesperada brecha da infinita correnteza de carros que cobre a avenida. Após muito batalhar com o volante, a mulher escorrega melancolicamente para a calçada. Pela cara, está atrasada para o trabalho. Vem abafada na camisola de algodão cinzenta, na saia de ganga ruçada, na guedelha por aparar, roupa e cabelo de outras eras, década de oitenta, na melhor das hipóteses, quiçá à falta de melhor no armário, quiçá à falta de maior auto-estima, fedor a naftalina e um par de rugas sulcadas bochechas acima, ainda que pareça rondar apenas os trintas. É a antítese do game boy.
Ainda a condutora tinha o carro ligado e já o outro se recurvara a mãos ambas no videojogo, os olhos colados ao pequeno ecrã. À aproximação da mulher, e sem a olhar em momento algum, o marmanjo liberta maquinalmente uma mão do aparelho: para estendê-la e recolher as moedas que a abatida e resignada senhora lhe deposita na palma, num surdo retinir de revolta. Tudo isto não leva mais que uma fracção de segundo e tudo parece responder com rigor a um código, a um acordo prévio, a uma lei que rege – tudo indica – o estacionamento na cidade e define claramente os papéis daqueles dois agentes de trânsito.
Como disse, em menos de um segundo deixou a mulher dinheiro ao biltre e logo atalhou caminho para o parcómetro: onde paga, com notável ostoicismo, com redobrado sofrimento, duplamente injustiçada, a taxa oficial de parqueamento.
Terça-feira quente. O barulho é rei todo-poderoso. Paredes de prédios, tapete de carros, transeuntes em transe. O calor brutal adormece os nervos, convida à letargia.

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