Bush, cornos & outras metafísicas

“Eu sei que o ser humano e o peixe podem coexistir pacificamente.”
“Estas pessoas não têm tanques. Eles não têm barcos.
Escondem-se em cavernas. Mandam suicidas para fora.”
George Walker Bush.
A propósito do que quer que fosse, num dia qualquer, algures.

A) Estará certamente entre os maiores mistérios do novo século: por que raio foi George W eleito (e reeleito) presidente dos Estados Unidos da América? (1)
No breve preâmbulo ao livro “Bushismos” (3€, no Modelo), mero inventário de disparates do Bush filho, uma hipótese é aventada:

“Cremos que nas modernas democracias se acentua a tendência para a igualdade entre o eleito e os eleitores, e que estes tendem cada vez mais a eleger aquele com o qual mais se identificam, porque se igualizam. Nesta hipótese, o discurso de George Bush corresponde ao nível médio do discurso dos eleitores [sic] americanos, que dificilmente se aperceberão dos problemas do seu Presidente, pois nem estão educados, nem têm paciência para ouvir com atenção, nem têm um nível de conhecimentos que lhes permita aperceberem-se de eventuais erros.”
Além do mais, será decerto difícil esmiuçar este singelo “igualizar” e escalpelizar o que nos leva (porque parece levar) a intuir o seu grau de parentesco com o importantíssimo fenómeno psicossocial da identificação; sem embargo, não será hipótese a menosprezar, até porque a função (aliás mais prática que estatutária) de representação é das de maior visibilidade que um político profissional desempenha. Talvez resida aí parte da explicação desta dinâmica.
De resto, a eleição de Obama não a contraria (2) – ou será que sim?
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B) Mas vejamos o caso que ditou a saída do ex-ministro Manuel Pinho do actual Governo. Será quase legítimo afirmar que os chifres exibidos ao parlamentar comunista no calor da troca de galhardetes que ambos protagonizavam é uma acção popular; quero dizer, é uma acção muito próxima do que faria um eleitor português médio (meio abichanado, convenhamos) no decorrer de uma discussão sobre política (ou futebol, ou mulheres; que, para o caso, vai dar ao mesmo). Perante aquele gesto de comédia, o português honesto (importa sublinhar: honesto) poderá
apenas sorrir timidamente, com um rubor de embaraço, como quem não consegue disfarçar que, em abono da verdade, talvez até reagisse tão estupidamente como o desgraçado Pinho (a indignação, que assomará inevitavelmente, só se justifica em virtude da enormidade que um bardamerdas daqueles aufere).
Sócrates (3), douta figura das andanças parlamentares e eleitorais portuguesas, conhecedor profundo do que é Portugal e/ou dono de uma intuição de raposa, logo tratou de despachar o ordinário do ministro.
Sem qualquer tipo de contradição, Sócrates teve, igualmente, uma reacção popular. Se, por um lado, é dado adquirido que qualquer português médio contém em si todo o potencial explosivo e a natural propensão para, no meio de uma discussão política, gesticular uns cornos para o seu interlocutor como quem esgrime o seu argumento derradeiro; é também inegável que o mais comum dos netos de Camões, filhos de Salazar, irmãos de Camarinha, se mostraria indignado com tamanha grosseria, com tão desonroso e despudorado comportamento, tanta falta de nível, enfim – e, obviamente, demitiria-o. Que sirva os interesses próprios e privados em detrimento dos interesses nacionais, que seja enfim incompetente, ainda vá; agora cá más-criações, nem pensar!
Uma vez que nestes comportamentos é factor determinante o que deles sobeje para a composição daquilo a que sem formalismos chamaríamos o-que-os-outros-pensam-de-nós, a reacção popular de Sócrates à acção popular de Pinho passa a ser, posso afirmá-lo com baixíssima margem de erro, o único dos dois comportamentos em análise que o português médio (seja lá o que isso for) admitiria ter.
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(1) A hipótese à época aventada de votação viciada via amigações e compadrios (à boa maneira portuguesa) e fruto de monstruosa maquinação de uma – não obstante visível e presente aqui & ali ao longo desses 8 anos – ordem do submundo (ao estilo do homem do cigarro dos saudosos X Files), a que o valoroso Michael Moore deu especial ênfase, não responde a todas as questões, especialmente face a acontecimentos recentes. Somando conspiração à conspiração (paletes de conspiração, e eis o ponto), arriscaria dizer que Al Gore muito lucrou por ter sido derrotado nessa polémica eleição de 2000 e que, a ter havido a mais leve prestidigitação ou encenação (premeditação ou aproveitamento, especialmente este último), a lógica inicial de votação viciada é posta em causa – pelo menos, nos moldes consagrados. Com efeito, o manto kitsch que cobre Gore desde então constitui-se pedaço nuclear da sua personagem pública, aos ombros da qual tem travado as mais espectaculares lutas pró-ecologia (diz ele), de que “Uma verdade inconveniente” é corolário e síntese. Essas nobres lutas valeram-lhe, inexplicavelmente, o Nobel da Paz. A estupenda cruzada contra o «aquecimento global», (o tom catastrófico da coisa foi até já arrefecido: entre outros, leia-se o “Cool it”, de Bjorn Lomborg (cuja credibilidade foi bastamente posta em causa pela imprensa), ou atente-se à sua quase total ausência da agenda mediática), ao invés de gloriosos voos, viu-se, isso sim, empequenada a reles pretexto publicitário, pilantrice de vendedor (veja-se, a título de exemplo, os «veículos amigos do ambiente» com «baixas emissões de CO2», assim apodados com base em fórmulas de medição de credibilidade nula). Em suma, os interesses comerciais das mais variadas indústrias (entre elas, a própria eco-indústria da reciclagem), que se resumem em boa parte ao bloqueio (político, comercial, etc.) de novos concorrentes (China à cabeça), têm no pobre Al, nobre «vítima» do sistema bushista, o mandatário ideal.
Resuma-se este asterisco ao que segue (sem perder de vista o ponto das paletes): W Bush pode ter sido eleito corruptamente; ou não (de resto, o sistema eleitoral estadunidense é bastante complexo e diverso dos europeus). E é daqui, desta premissa de dúvida perene, que segue o texto.
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(2) Neste caso, no entanto, parece passar-se (parcialmente) o oposto: a propaganda da actual Casa Branca parece insistir num ponto: o presidente é igual aos eleitos: é um pai norte-americano como outro qualquer, que grelha carne no quintal, que brinca na relva com o cão (o insigne embaixador português), que cava a horta com a sua enxada, que lança ao cesto junto à garagem e que até resolve zangas à volta de uma mesa de copos.
A diferença essencial relativamente ao eleitor médio será apenas uma: Obama exibe-se sempre envergando uma camisa branca e gravata (sim, mesmo a sachar e a assar a entremeada).
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(3) O caso português será, porventura, consideravelmente diferente. O norte-americano médio tem (?) orgulho, por assim dizer, no que é, com respeito à cósmica proporção estabelecida entre esse sentimento e seu processo de geração e aquilo que o país em que habita representa em termos económicos, culturais e políticos no mundo e arredores; no caso, os EUA são (juízos à parte) a potência mundial. Já o português médio, enfim, pelo oposto do que se disse e por tudo o mais que desde tempos esquecidos caracteriza o Zé Povinho, o pranto destas gentes, o seu triste fado, o indizível desfiar de corruptelas e corrupções das esferas altas e baixas, o desperdício e as desigualdades, e por aí fora, etcéteras e tal – o português tenderá a eleger a figura que mais fuja a esse estereótipo nacional, porque naturalmente não se revê nele (falo do estereótipo), porque precisamente se revê no negativo dele (do estereótipo...), e porque assim o (idem) crê negar, ao mesmo tempo que se afirma – perante os outros, os mesmos que lho imputam – em não-conformidade com ele (o do costume). Acontece, porém, que é nesse supremo acto de recusa (enternecedora) que o português se mostra, em todo o seu esplendor, conforme o estereótipo (ele).

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