Aprender a Empreender

"A maioria das pessoas nunca poderia ter um carro ou uma casa se não recorresse ao crédito, é por isso que o crédito pode ser uma coisa boa."
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À primeira vista, esta frase caracteriza-se por uma simplicidade infantil, quase inofensiva. A mensagem é simples. E, para todos os efeitos, verdadeira. A sua geometria básica e a total ausência de floreados são, contudo, enganadores.
Basta uma segunda leitura para que, onde se lia uma referência vaga e algo inoperante ("A maioria das pessoas nunca poderia ter..."), releve afinal uma familiar nota de uniformização em que todos, a contragosto, nos revemos. Basta uma segunda leitura para que, onde residia uma risível infantilidade ("...é por isso que o crédito pode ser uma coisa boa"), perdure o paladar desagradável de um paternalismo sombrio e ecoe uma ríspida, quase marcial, ordem.
A frase, por si, tem um toque musical que se insinua, que se entranha como um refrão fácil. É também rectilínea: não permite mais do que uma interpretação. Neste estilo de melodia em ângulo recto, a frase deixa de ser uma mera constatação de um facto (deliberadamente separada do histórico que lhe confere o estatuto de facto propriamente dito) para passar a corporizar a mais pura expressão da Verdade - a que não admite perguntas, a que automaticamente dá respostas.
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A frase acima transcrita foi retirada de uma brochura (v. abaixo) que a minha irmã trouxe da escola. O cabeçalho não mentia: "JA: ECONOMIA PARA O SUCESSO" (v. 1ª imagem abaixo). Ao topo do parágrafo de onde extraí a tal frase (v. 3ª imagem), lia-se: "COMPRA AGORA, PAGA DEPOIS".
Cada frase que lia soava-me estranhamente familiar. As palavras escolhidas, a mensagem global, as associações de conceitos, a própria cadência do discurso. Tudo aquilo era estranhamente familiar. Então entendi: aquela brochura podia muito bem ter sido redigida pelos assessores do José Sócrates, não obstante algumas diferenças (poucas, na verdade) que se deviam certamente à juventude dos presumíveis leitores por oposição à fatia 18-55 a que o nosso #1 maioritariamente dedica o latim. Sendo aquele texto de outra fonte e supondo que pouco mais seria que a tradução do original em inglês (o JA é de Junior Achievement Worldwide, uma grande "organização sem fins lucrativos" na qual a sucursal portuguesa se integrou há pouco mais de quatro anos - v. 1ª), achei que a decisão sobre qual seria o ovo e qual seria a galinha era, além de inútil, apenas aborrecida.
Aconselho a leitura das temáticas das seis sessões de trabalho em que consiste o projecto (1ª). Uma nota final para dizer que não são apenas os créditos os produtos propagandeados aos nossos futuros consumidores na casa dos 12-16 anos; também os seguros ("ARRISCAVAS?" - 3ª) são aqui pintados num maneirismo simultaneamente preocupante e cómico.
Ah, ia-me esquecendo: os patrocinadores (no rodapé da 4ª).
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