Quinta-feira, 21 de janeiro: entrevistas de emprego.


11H00
Foi ontem (repito para mim mesmo: foi ontem. Repito várias vezes: foi ontem foi ontem foi ontem. Repito e repito porque - não sou capaz de perceber por que motivo - parece que foi há muito mais tempo. Dir-se-ia: uma eternidade). Entrei na sala (uma luz branca que despia, uma lente que ampliava). Ao fundo, vislumbrei o que me pareceu ser uma mulher. Uma voz de facto feminina disse o meu nome. Avancei (os meus passos ressoavam na sala). Detive-me numa fronteira invisível e senti um calor desconfortável. Sabia que era uma mulher que estava diante de mim, e, no entanto, inexplicavelmente, não lhe via as feições com clareza. Era um vulto na sombra da luz branca da sala. A mulher repetiu o meu nome, como quem, para evitar mal-entendidos desagradáveis, quer confirmar tudo muito bem antes de começar. Acho que murmurei qualquer coisa. Sem se levantar (a mulher estava sentada numa cadeira por trás de uma secretária cinzenta), a mulher começou: mediu-me o perímetro corporal, avaliou-me a penugem rala do antebraço, contou-me os pontos negros e calculou-lhes a massa sebácea, catou-me a cabeça e as virilhas, extraíu amostras de cuspo e sémen, mediu-me o comprimento dos pintelhos e reproduziu-lhes em esquema o encaracolar, cheirou-me demoradamente as axilas, esboçou-me num papel de vários ângulos, beliscou-me os braços e o pescoço e fez-me cócegas nos pés e registou as minhas reacções, instou-me a gargalhar, depois a choramingar e, finalmente, ordenou-me que me quedasse sem expressão durante imenso tempo e, mais uma vez, registou todas as minhas reacções. Depois, recomeçou tudo de novo. Ao longo de todo o processo não cessou de olhar para mim como se eu não estivesse ali, ou como se eu não estivesse a vê-la, o que interpretei como uma tentativa de me amedrontar. De tudo fez números. Fez de mim um número. Aos números, organizou-os em tabelas e gráficos. Finalmente, no fundo da folha, a mulher escreveu lentamente num papel o número que passei a ser. Nesta altura, os contornos de sombra da mulher agitaram-se. Pareceu-me feliz, como quem termina uma tarefa aborrecida. Sem que alguma coisa o anunciasse, perguntou-me: em que está a pensar? Estranhamente, não fiquei surpreendido. Dir-se-ia até que já aguardava a pergunta, só não sabia em que momento surgiria. Senti uma exaustão profunda e muito calor. Não respondi. Sabia que, se o fizesse, a mulher, com a mesma autoridade neutra, me perguntaria: porquê? Com o meu silêncio, a silhueta de cinza da mulher agitou-se, talvez insatisfeita. Os segundos foram passando. A sala tornou-se pequena e o ar pesado. Então, mecânicamente, a mulher pousou com um baque plástico a caneta no tampo da mesa (a sua mão rompeu a sombra: lembro-me das veias escuras, dos ossos salientes). Foi então que compreendi que não iria ficar com o emprego. Senti-me profundamente infeliz.

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16H30
Dei comigo numa sala com outras pessoas. Não identifiquei nenhuma das caras. Notei que todas olhavam na mesma direcção. Reparei então que estávamos sentados ao redor de uma mesa comprida e que, à cabeceira, uma mulher ajeitava um pequeno molho de folhas. Como todos a olhavam, olhei-a também. Observei-lhe os gestos e lembro-me de ter pensado que parecia uma professora no início de uma aula. Ou um apresentador de notícias de televisão no fim do programa. Continuava sem compreender o que fazia ali, de modo que olhei em redor em busca de pistas. Todas as pessoas presentes me pareceram muito diferentes entre si. Ao mesmo tempo, porém, todas se me afiguravam estranhamente iguais. Havia alguma coisa na sua expressão, no substrato das suas fisionomias, que parecia dizer que não tinham passado, ou que o seu passado tinha de algum modo deixado de importar. Como se só existissem no presente. Ou como se afirmassem que todos os caminhos vão dar ao mesmo lugar. O lugar seria aquele? De pensar estas coisas, não dera por que a mulher da cabeceira da mesa me chamava já há algum tempo. Acho que pedi desculpa pela desatenção e passei a prestar atenção ao que ela me dizia. Recordo-me vagamente de me terem sido pedidos o nome, a idade e a morada. Acho que isso me aborreceu. Numa das folhas que ajeitara há pouco, a mulher ia escrevendo o que eu ia dizendo. Notei que escrevia com os olhos muito próximos do papel. Achei graça vê-la assim toda dobrada sobre a mesa para escrever e tive vontade de rir. Contive o riso, porém. Olhei em volta para ver se mais alguém reparara nisto e se também achava engraçado. Mas, quando o fiz, notei que todos me olhavam fixamente agora. Voltei a sentir a estranha sensação de toda aquela gente, tão diferente entre si, ser, afinal de contas, igual. Quando parou de escrever, a mulher retomou o diálogo comigo. Acho que voltei a pensar que parecia uma professora. Colocou-me várias perguntas e eu esforcei-me por responder correctamente a todas. Perguntou-me: quais foram as suas experiências passadas. Perguntou-me: há quanto tempo se encontra nesta situação. Perguntou-me: quais são as suas expectativas futuras. Perguntou-me: que motivos o levaram a comparecer aqui hoje. A tudo respondi o melhor que pude, pese embora ter ficado com a sensação clara que a mulher ficou desconcertada com as minhas respostas. Quando me calei, um silêncio pesado instalou-se à volta da mesa. Comecei a transpirar e senti-me completamente exausto. Reparei que todos me olhavam com estranheza, como se as respostas que encontrara tivessem sido inadequadas. Alguns, mais velhos, olhavam-me com um ar recriminatório, mesmo hostil. Não entendia porquê e devo confessar que me senti profundamente aliviado quando a mulher (que enfiou a folha onde escrevera o meu nome no fundo do molho) passou a falar com o homem que estava sentado ao meu lado e todos passaram a fixá-lo a ele. Eu próprio o olhei com o ar mais severo que fui capaz.

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