Entra tosco e aos apalpões, de órbitas enormes e salientes, os olhos fixados num ponto qualquer que não faz sentido. No medo do choque, o crânio calvo segue num plano recuado ao do tronco, traz a coluna a prumo, o chapéu-de-chuva vai tocando aqui e ali a medir distâncias e a sentir arestas. As pernas movem-se com rigidez. O rosto, esse, é bonacheirão, de nariz grande e redondo, faces escanhoadas, testa longa. Os lábios finos, de homem, como pedindo condescendência e apoio, desenham um sorriso quase perene, que só desfaz quando, sentado, já com o café e pastel-de-nata que a menina do balcão, reconhecendo-o de todos os outros dias, lhe vem, contra as regras da casa, deixar à mesa, se sente desacompanhado, fora de cena. Tento imaginar como será sair de casa praticamente cego. Começo por me lavar, por me vestir. Estarei sozinho? Estará alguém comigo, nessa tão chata e tão profunda intimidade? Ou estará a casa a meu exclusivo e especifíssimo jeito, toda organizada e arrumada para q...
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O mero prazer, a irritação mais ou menos profunda, o aborrecimento: estes sentimentos, e enfim todos os que possamos apontar, são apenas periféricos, parciais, superficiais; e uma mulher a que nos liguemos não nos inspirará jamais esses sentimentos. Podemos crer que sim, se, mais tarde, reflectirmos acerca dalguma experiência ou ocasião partilhadas com essa mulher ou dalguma maneira a ela associada e tentarmos esquematizar ou traduzir aquilo que sentimos. Mas isso será sempre uma redução ao inteligível, ao dizível, uma fragmentação aleatória do todo que não somos capazes de nomear por inteiro. Isto é, fazer sexo com a mulher amada não é uma experiência «de prazer» - ainda que necessariamente o prazer nos beneficie - bem como um desentendimento com ela não é apenas uma contrariedade; antes são dois acontecimentos totais em que nada mais se ouve, nada mais existe. As suas consequências ultrapassarão sempre, e largamente, a nossa percepção e a nossa capacidade de ajuizamento, mas se...
11 de Setembro: 13 anos
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O jornal de hoje estava pejado de pequenos artigos e entrevistas de e a académicos, analistas e políticos de carreira que, não sem generosidade, partilharam da sua mundividência acerca do que tem passado no Iraque e um pouco por todo o Médio Oriente, das perfídias do Estado Islâmico & outros que tais e, enfim, do «terrorismo internacional» em geral. Fiquei sabendo, por estes miradas impressas, que os olhinhos de todos estes ilustres homens ilustres só enxergam pelo estreito deixado pelas palas erigidas no bárbaro derrube do World Trade Center, no dia 11 de Setembro de 2001, há 13 anos em ponto. O presente é por esta gente observado à luz da impossível versão das autoridades estadunidenses e mesmo quanto ao futuro são as suas posições meramente o eco das já remotas futurologias oficiais do pós-11/09. Nada de novo: uma mentira horrível foi feita História. Estão em causa coisas muitíssimo mais importantes que a História (que não é só uma disciplina pseudo-científica encomendada, ou...
"O que é a vida sem casa?"
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Terá sido nos idos de 1995: a Ilha do Fogo reafirmava a justiça do seu baptismo ao tirar do estômago da terra, já não as batatas ou o feijão que os insulares lhe rogavam, mas uma lava rubra & negra que, de par com uma cinza sem fim que descia dos céus, foi de casa em casa caminhando, com a certeza duplamente lenta e repentina da Morte, a trazer a má-nova do fim de tudo o que, até ali, fora a vida. Um jornalista português foi até àquelas paragens com a incumbência de recambiar de volta à costa atlântica da Península os ecos que a sua ciência lhe desse azo de recambiar. Dele a expressão «lava rubra e negra». Terá estado com um homem junto à sua casa já moribunda, apenas matemática questão de cronómetro até à derrocada do antepenúltimo pedaço anteceder a do penúltimo, e essa, por sua vez, a do derradeiro. Instado a deixar aquele lugar de desespero, o homem terá respondido: "fico até ao fim, fico até ao princípio da minha vida nova". Noutro local, andando as autoridades ...
Do conflito israelo-palestiniano - observações avulsas
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"Não é aceitável que um país seja ameaçado por rockets, mas é preciso que a resposta seja proporcionada. Seiscentos mortos é, evidentemente, algo que não se pode aceitar." Laurent Fabius, MNE francês (DN, 23/07/14) 1 - Pegando no que disse Monsieur LF, algumas questões A presente acção das forças militares israelitas é, rigorosamente, verdadeiramente, uma "resposta"? O que é, num contexto como este, uma "resposta proporcionada"? Até que número, em que quantidade, são os mortos aceitáveis? A partir de quantos passam a ser algo "evidentemente" inaceitável? 2 - "Barbaridade, s. f. acção própria de bárbaros; crueldade, desumanidade" A presente intervenção militar do governo israelita é uma barbaridade. É injustificável e inadmissível. Benjamin Netanyahu, PM israelita: "faremos o que for preciso para nos defendermos"; Ron Dermer, embaixador de Israel nos EUA: [os soldados israelitas] "deveriam receber o ...
Gareth Bale
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Só uma parte do valor de transacção de um dado capital traduz o seu real valor no momento em que essa mesma transacção ocorre. Dos 100 milhões de euros que, aparentemente, o maior clube de futebol da capital espanhola está disposto a destinar para garantir os préstimos de Gareth Bale, só uma parte está vinculada ao seu verdadeiro valor. Uma grande fatia desses disparatados 100 milhões fica a dever-se, entre outras variantes, a pura especulação económica e a um certo vício de espectacularidade mediática que de há uns anos a esta parte tomou os gabinetes da direcção daquele emblema. Prosaicamente, Bale não justifica tamanho investimento. Neste ponto, é-me até quase inexplicável como raio é que se chegou a este número ridículo de 100 000 000. Desde logo, pergunto-me o que motivará um jogador cujo trajecto num determinado clube seja tão concretamente positivo a desejar uma transferência. O que é que o move? Dir-me-ão, não sem uma certa sobranceria ...
Alagoou-se o meu umbigo
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Foi numa dessas tardes feitas de sal e sol. Perante meus olhos incrédulos, meu umbigo inventou-se lago. Casa só dum impossível botão, olho vazado de ciclope, enormizou-se de salgado lago de liliputianos. As nuvens negras de meus cabelos choveram as águas capturadas no mergulho que dera, do mergulho que dera vindas eram as águas que as negras nuvens dos cabelos meus descativaram e fizeram correr pelo vale terroso do peito, aqui e além detidas pelos afloramentos protuberantes dos mamilos, transbordantes ainda pelos grandes desfiladeiros dos flancos, confluentes finalmente no vaso nu do umbigo, pedaço d'água rodeado de terra por todos os lados. Um lago, indesmentível e duma vastidão plana e preguiçosa como só os lagos sabem ter, ali mesmo, no orifício que trago na barriga. . Mas logo o sol desinventou todos esses arroios e ribeiros. Desinventou até o lago, despromoveu-o a umbigo. Resistaram somente, impres...