Tinha a boca escancarada num riso grotesco, que realçava a dentadura horrenda, de presas enormes, espaçadas a ponto de entre elas caberem dedos mínimos - uns dentes amarelecidos do café, acizentados do tabaco, esverdeados da falta de escovagem, a boca enorme deformada num esgar de atrofio muscular; os olhos, saídos e amarelados, cheios de pequeninos veios encarnados, sob um sobrolho aparentemente cansado, brilhantes da cerveja; a testa, pequena e abaulada, vincada de sulcos sebentos; o cabelinho curto, mal aparado, crespo e oleoso, salpicado aqui e ali por crostazinhas de caspa; a voz, simplesmente animalesca, como um grunhido cavo, às vezes rouco, como a rosnar, outras vezes agudo, como um silvo; o andar, tosco e nervoso, como um espasmo contínuo, deixava gravada a impressão de estarem os ossos a esticar até ao limite a pele seca e curtida, quase a esgaçá-la encarniçadamente em rasgos dolorosos; de resto, todo ele era ossudo: a fuça longa, os ombros encovados, as manápulas pejadas de cravos, os joelhos tortos; e os pés! uns chispes bestiais, indecentes, longos e estreitos, curvos e pesados, estrafegados por umas botas de trabalho, pretas e gastas, de couro e sola de borracha, com uns atacadores gigantescos, do topo da língua da bota até à biqueira reforçada; estava, aliás, completamente fardado: era bombeiro.
Algo de errado se passa.
Algo de errado se passa. (O quê, em rigor – de tanta coisa – nem sei bem. Mas) Digo-o com toda a sinceridade e determinação, com um arrufado sentimento de missão à mistura, como se dependesse unicamente de mim, num fardo hercúleo sobre os meus inexperientes ombros, todo o futuro da nação portuguesa: algo de errado se passa! Tenho que denunciar este crime hediondo. Tenho que trazer luz a esta sombria hecatombe, repetidamente dissimulada sob os focos de Suas Senhorias os estúdios televisivos, sob as tribunas de Suas Sumidades os nossos representantes, sob as indecentes camadas de pó-de-arroz de Suas Excelências as nossas vedetas! Ou muito me engano, ou todo este meu apreciável esforço já vem fora de tempo. Ou muito me engano, ou já nos encontramos afundados por completo no peganhento lamaçal da nossa corrupta e bafienta sociedade. Ou muito me engano, ou já é tarde de mais! Oh! e a virulenta censura a que serei sujeito e a perseguição mortal em que me verei protagonista, e o ataque rancor...