Um dia no estágio

Observava-o da minha cadeira já há alguns minutos: os olhos experimentados brilhavam-lhe debaixo dumas sobrancelhas arqueadas de júbilo, e um fio de baba luzia ao canto dos beiços, trementes de emoção. Do piso cimeiro, todo emoldurado com arcos perfeitos, madeirinhas azuis e tectos de um branco reluzente, o sr. João, ancião que anda nestas andanças há uma trintena de anos, apesar de apenas as ter começado depois de aposentado – e por aqui se vê a sua venerável idade –, antevia um dia melhor que os dos últimos tempos, uma “invasão de gente”, pois havia aí na terra boda nupcial e acabava de chegar um autocarro duma excursão.
Desde que aqui estou, faz hoje uns quinze dias, que o ambiente do recinto é, digo-o sem ironia, um paradigma de refrescante calma: o constante jorrar da água no piso térreo e no imediatamente abaixo, admiravelmente conjugado com a música ambiente, concedem ao espaço um génio dalgum modo bucólico, calmante e respeitável. Até os utentes que por aqui passam são, por motivos díspares, como a sua origem modesta ou a sua posição social alta, educados e civilizados – ou, melhor, silenciosos (acabo por preferir silenciosos: assim garanto mais facilmente a credibilidade e realismo da narração).
“Quanto custa vir aqui a banhos?”, interrompe-me um senhor de bigode, t-shirt e calções claros de fim-de-semana, sandálias a mostrar os dedos peludos e amaneirados ao calçado mais tirânico. “É conforme”, respondo-lhe meio desnorteado. Obrigo o corpo inerte a dobrar os seis metros que dista dos preçários com aparente à-vontade e trato de explicar ao senhor de bigode, entretanto já aparelhado com a, suponho, esposa (que, por acaso, não trazia o costumeiro buçozinho) que primeiro vinham a inscrição e a consulta e, só depois disso feito e convenientemente pago, é que entram em cena os desejados “banhos”. Em resposta, acena-me com a cabeça a dizer que compreende e que agradece, mas o trejeito de admiração do lábio inferior e a permuta de olhares cúmplices com a parceira traem-lhe os ares de abastado. Adivinho-lhes o pensamento: “isto de vir aqui a banhos ainda sai carote!”.
Passados cinco ou seis minutos a estudar com afectado interesse o papelito, tomam apressadamente o caminho das escadas de volta à saída, sem sequer me olharem – talvez responsabilizando-me pelo preço alto dos tratamentos ou pelo valor baixo dos seus ordenados.
Enquanto me entretenho a pensar nisto, vejo subirem as escadas uma trindade de luso-estrangeiros, talvez luso-canadianos, talvez luso-americanos; certo, certo, é que falam um inglês manhoso, apresentam um bronzeado recente e homogéneo, trajam coisas justas e coloridas e trazem os cabelos empastados de gel. Aposto comigo que é "wet look" – se bem que, se fosse eu a escolher-lhe o nome, proporia "fucking false wet look". Mas ainda não os dividi por género: dois homens e uma mulher. Nem por faixa etária: um nos 35-45 e os outros dois, um e uma, nos 15-25. E, mais importante, ainda não disse por que falo neles: já familiarizados com o espaço e com o já falado sr. João, são imediatamente encaminhados para o “senhor doutor”, um idoso com ar cómico, com um arqueado de costas e um pescoço a lembrarem uma tartaruga velha, o pescoço com duas pregas de pele esticadas no enfiamento das artérias, acentuadas pela gola da carapaça, que, dizia eu, já os aguarda sorridente, sorriso de 30 euros livres de impostos: “Hello!”, atira-lhes, com sotaque de Zezé Camarinha. Dirigindo-se à jovem, que, por aí adivinho, é quem vai ser consultada, continua: “Do you like here the Termas of Monfortinho?”. “It´s alright, yea”, responde-lhe ela com um jeito do pescoço, “Ah, ah, ah”, força o "Tartaruga Genial".
(nota: a gargalhada forçada também levou um toquezinho de very british)
Putta cream, pá”, comentei com os meus botões – por sinal, uns belos botões cor de pérola, nas suas casinhas perfeitinhas de camisa de linho fina e fresca, daquelas que, a serem adquiridas, só o podem ser em saldos, mas saldos à séria, de 75% ou mais, e que nós gostamos de usar com exagerada frequência, só para mostrar, só para nos pavonearmos, mesmo que não esteja bem engomada ou lavada e mesmo que a tenhamos herdado dalgum ricaço em processo de remodelação de guarda-roupa – como é, por mera coincidência, o caso.
Já a manhã vai a meio e, como se vê, o trabalho está à pinha. É uma loucura, uma canseira, um stress, uma coisa por demais, de fazer inveja a uma londres ou a uma paris, de fazer corar uma lisboa ou uma roma, de fazer bocejar um alentejano, de fazer formigueiro a uma perna, de fazer desesperar um monge ou um funcionário público, de fazer trabalhar um deputado. De fazer, enfim, um gajo rabiscar uma parvoíce deste calibre.

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