Mentira e contradição, constantes da arte e da vida 1

Escrevia André Bazin, nos idos de janeiro de 48, a propósito do cinema (neo-) realista italiano:
"o realismo em arte só poderia evidentemente provir de artifícios".
Sumarenta quanto baste para inúmeras teses e considerações, eis a suma-contradição (diria grã-riqueza) de qualquer expressão artística realista, eterna e invariavelmente definida, como dizia Bazin, pela "escolha entre o que vale ser salvo, perdido e recusado". Essa escolha, por sua vez, é simultaneamente "inaceitável" ("porque feita à custa da realidade (...) que se propõe reconstituir integralmente") e "necessária" ("porquanto a arte só existe por esta escolha" e porque "sem ela [e sem quaisquer limitações técnicas] voltaríamos pura e simplesmente à realidade").
Enquanto mensagem, seria inútil (além de impossível) reconstituir integralmente a realidade. De resto, a realidade caracteriza-se também pela sua continuidade temporal, por oposição à visão fraccionada que uma qualquer expressão artística corporiza. A escolha, trave-mestra da expressão realista, apresenta-se então como o veículo para uma "qualquer nova conquista sobre a realidade". Tenhamos ainda em conta que a extrema complexidade deste processo não se esgota no seu processo criativo; a sua publicação é em si um aspecto fulcral da desejada conquista.
Por outro lado, e tendo em atenção a distribuição, meio de publicação e eficácia persuasiva das diferentes expressões artísticas, a ilusão que está umbilicalmente associada a todo o processo poderá substituir na memória colectiva e individual a realidade que busca eternizar. Se para o público isto representa a "perda de consciência da própria realidade", para o autor este processo pode levar a que não distinga "claramente onde começam e acabam as suas mentiras".
E eis que Bazin fala (finalmente) de mentiras.

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