Mentira e contradição, constantes da vida e da arte 2

Mentiras, sim. Que nome dar então às representações ilusórias da realidade, sempre imperfeitas, sempre incompletas, sempre fruto duma escolha? E não se tratará a arte de um mostruário de mentiras, de falsas realidades? Não se trata, evidentemente, de qualquer juízo mais ou menos moral. Ademais, parece certo que, uma vez publicadas, essas mentiras constituir-se-ão como complemento do contínuo temporal da realidade que outros recriarão, mentindo (insistindo no polémico vocábulo). Uma realidade feita de mentiras; mentiras descendentes da realidade.
Alternativamente, rapidamente - diria até instintivamente - poderíamos cair no facilitismo de defender que, posto isto (e o mais que saibamos), não existe tal coisa como realidade, mas, isso sim, realidades, proposição assim formulada num plural macio e uniformizador; generalização que a tudo presume responder sem que responda a coisa nenhuma; beco morno, porto seguro onde tantas avenidas, tantas rotas do conhecimento morrem. Esta será justamente a abordagem comum, de tradição conclusivista, alérgica por contágio e sugestão à incerteza sempiterna (e por isso mesmo estimulante), à contradição genética e umbilical de tudo quanto é vivo e complexo.
Neste ponto, proponho que relembremos demoradamente outro francês:
"Essa indecibilidade é, ao mesmo tempo, o que limita para sempre e o que abre indefinidamente a possibilidade de conhecimento. O que limita para sempre: nunca nenhum sistema de ideias, nenhuma teoria, poderá vir a fechar-se; conterá sempre uma proposição indecidível; e isto abre infinitamente a aventura espiritual: o cérebro humano necessita do ecossistema, da cultura, da sociedade, da praxis, para estabelecer as suas verdades, o que o incita a procurar na, e por meio da, natureza, na, e por meio da, cultura, na, e por meio da, sociedade, na, e por meio da, prática, a solução das suas incertezas. Mas vai, mais uma vez, reencontrar no novo sistema de ideias a ambiguidade e a indecidibilidade, que o incitará a procurar, a elaborar, um metassistema. E, assim, o espírito humano, na sua abertura constitutiva, é levado ou a fechá-la mitológica e ideologicamente (sendo ideologia qualquer teoria fechada que encontra em si própria a sua prova), ou, sabendo-se condenado ao inacabamento do conhecimento, a votar-se à busca errante da verdade."
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(parte 1, aqui)

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