Serpenteio vale acima

Serpenteio vale acima, envolto num bréu morno. Os faróis desbravam caminho no puré negro da lua nova. Levo o braço debruçado na varanda da janela com a língua de fora da boca a gozar o vento que lhe afaga o focinho. Os pinheiros-mansos cor de cinza despedem um trinado ramalhudo de grilos e sob a chapa parda do capô as válvulas fatigadas matraqueiam com langor o seu fado castiço. Pergunto-me se na minha ausência não terá algum espirituoso juntado às carnagens laterais do carro umas palas de burro, ou se é de fábrica que a besta só enxerga em frente. Serpenteio vale acima, num isolamento lunar. Fixadas nas duas margens da via, populações de placas e sinais amarelos, pretos, vermelhos e brancos miram-me à medida que passo. Numa rigidez de estátua, as suas faces luzídias reflectem o brilho metálico do fio da catana com que o meu carro fustiga o mato denso em que nos embrenhamos vale acima. A um toque áspero de um interruptor de plástico, a catana é embainhada e as placas e sinais somem-se da vista, instantaneamente embrulhados em noite cerrada. Novo toque, e ei-los desembrulhados, reluzentes uma vez mais. Sou o astro-sol e estes sinais os satélites que me reflectem a luz. Serpenteio vale acima e sou o astro-rei, serpenteio vale acima e desligo mais longamente os faróis para troçar dos sinais que deixam de existir envoltos numa colcha negra. Mas (tuntun tuntun tuntun tuntun) eis-me rodando cego, sem mãos para palpar o caminho (uma a babar-se ao vento, a outra feita pilar da ponte de carne que liga o ombro ao volante), eis-me serpenteando por assim dizer às aranhas, tão falto de vistas como se um clarão súbito me inundasse de leite o pára-brisas, eis-me naufragado num oceano de escuridão. E numa aflição reacendo as luzes do carro, sentindo a testa perlada de um suor frio. Os mil satélites que pontificam a costura da estrada ressurgem com a sua luz emprestada. A silhueta do caminho, assim destacada, traz-me de volta a paz lunar com que serpenteio vale acima (há horas). Apercebo-me que gravito na órbita de satélites.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados