Insónia

Foi quê, quarta passada?, bom, não sei dizer ao certo, mas penso que sim, que foi na madrugada de quarta para quinta, um calor dos diabos, aquele sótão é um forno no verão, uma autêntica estufa, nós dois é quanto basta para pôr aquelas paredes e as minhas costas a transpirar, risquinhos a escorrer pelo estuque branco, um suor espesso a depositar-se no fundo das minhas costas, sobre o rabo desbronzeado, sobre o rabo que tem um sinal negro que tu conheces e, o que é mais curioso, gostas, escorrências espessas que parecem brotar das sancas, que descem pela curva pronunciada da coluna até aos rodapés de mosaico, que caem do topo da nuca até ao cotão acumulado junto à ficha-tripla onde ligo o candeeiro da secretária (se é que se pode chamar àquilo secretária) e o rádio de cê-dês azul e prateado que já se fartou de viajar comigo, correu já o país inteiro, de lés-a-lés, eu sei lá, aquilo já deixou de ser uma mera radiola, aquilo é já um companheiro de viagem, como tu, tu que sonhas os teus sonhos de criança, que sonhas a dormir e sonhas acordada, que trazes nos olhos um brilho de sonho e de criança, que enquanto dormes és infinitamente feliz, que acordada fazes de tudo para te manteres adormecida, para te manteres sonhadora, te manteres criança, tu que já deixaste de ser uma mera namorada, que és isso sim uma companheira de viagem.
Mas dizia, foi quarta-feira, noite dentro, um ataque cerrado, sem tréguas, um massacre daqueles, uma baía dos porcos, um dia d, um bombardeio atómico dalgum enola gay, uma porrada de melgas a sobrevoar-me e a azucrinar-me com voos rasantes aos meus ouvidos, um zumbido dos diabos, um calor dos diabos, eu destapado, indefeso, as putas a aproveitarem-se, as putas num banquete a tripa-forra, gordas que nem vacas de sangue meu, o calor apertava se eu me tapava, o cabrão estava de conluio, Isto é um complô, pensei eu, e quando pensei isto, Isto é um complô, lembrei-me daquele preto que jogava basquete comigo na secundária de Talaíde, nas tabelas junto aos balneários, ele é que dizia muitas vezes complô, como é que ele se chamava?, Nelito, isso mesmo, Nelito, o Nelito era um preto gigante, eu que nem era dos mais baixos não lhe chegava sequer ao ombro, lançava da linha de lançamento-livre com um à-vontade dos diabos, um zumbido dos diabos, um calor dos diabos, as melgas e o calor unidos a moerem-me o juízo, madrugada entradota e eu sem pregar olho, mas então ele fazia muitas vezes apostas comigo sobre quantas vezes seguidas encestava do lançamento-livre, ele jogava mesmo, ou se não jogava eu julgava que sim, físico e técnica não lhe faltavam, Trinta vezes, disse-me ele, a acentuar as primeiras sílabas, Trrinta vézes, no seu sotaque castiço de africano, Trinta?, perguntei eu e o trin saiu-me esganiçado da garganta adolescente, Não consegues, nem que te borres todo, e não é que o gajo pega na bola, lembro-me bem, como se fosse ontem, pega na bola e começa um, dois, três, tudo sem espinhas, lá dentro, e sorria enquanto relaxava as pernas após cada lançamento, com uma calma dos diabos, um zumbido dos diabos, um calor dos diabos, eu todo suado, sem arranjar posição para estar, com as molas do colchão a vincarem-me os rins, os lençóis a pegarem-se-me ao corpo, as melgas riam como hienas, todo eu me coçava, Foda-se, putas das melgas, e este calor, e o Nelito sem vacilar, sete, oito, nove, eu Queres ver que o gajo hoje mete-as todas?, eu Queres ver que hoje não durmo?, e as melgas duma obesidade mórbida, duma morbidez obesa, já nem voavam, planavam só, os tectos gotejavam pingos grossos de humidade, a transpiração das minhas costas a corroer o lençol, e o Nelito a rir às gargalhadas, parecia uma hiena também, mas simpática, cómica, Trréze, cátorrze, eu já resignado Ele hoje mete-as, eu já quilhado Hoje não durmo nem vinte minutos, e nisto começa gente a ajuntar-se a assistir, Quem é?, perguntavam-se, É o Nelito, diz que hoje mete cem, Porra, que calor, as babas a alastrarem-se, eu a esgaravatá-las com fúria, a raspá-las com as unhas, mas uma camada de suor tornava-lhes a superfície escorregadia, e então eu esfregava mais, com mais força, e os rodapés ensopados, o cotão colado aos mosaicos, Ainda bem que tenho a tripla desligada, não fosse algum pingo de humidade lá cair e o quadro rebentar e o despertador ficar a zeros, quatro zeros a riscos vermelhos, numa intermitência imbecil, e não tocava amanhã e eu não despertava, mas talvez nem venha a ser preciso, pelo andar da carruagem hoje não prego olho, tu é que estás bem, dormes como um anjinho, com uma leveza celestial, tão feliz que és quando dormes, e o Nelito sem parar, dezoito, dezanove, vinte, já arrancava palmas da multidão que se reunira à nossa volta, e mais pessoas se nos juntavam a quererem saber o que se passava, É o Nelito, já meteu umas setenta, mas dizem que ele quer meter cento e cinquenta seguidas, cento e cinquenta melgas, um exército organizado e motivado de cento e cinquenta melgas aos guinchos sobre mim, a arpoarem-me os braços, o pescoço, os flancos, tu a dormir feliz, o Nelito a encestar a vigésima nona bola seguida, o calor a rir como uma hiena, o estuque manchado de negro pelo suor, eu numa insónia dos diabos, um zumbido dos diabos, um calor dos diabos, as pessoas à volta do Nelito Trezentas e quarenta e nove seguidas, isto é histórico, a escola toda em peso pendurada numa tabela de basquetebol, mais de mil alunos, mais de mil melgas, mais de mil putas a sugarem-me o sangue e a deixarem-me todo às lombas, eu a coçar-me, Nelito, Nelito, Nelito, gritava a escola, eu Nelito, estás on fire, já só te falta uma, mas ele nem me ouvia, tal era a euforia, uma euforia dos diabos, um zumbido dos diabos, um calor dos diabos, ouviam-se comentários à volta Se ele meter esta são quinhentas de seguida, isto vai para o guínesse, o Nelito radiante, tu feliz, eu delirante, as melgas fartas, a boiar na humidade pegajosa do lençol e do tecto, o Nelito confiante de lançamento armado Esta é prati, Andrré, o chefe do exército das melgas certo da vitória, eu escorrendo pela parede abaixo alagado em suor, até que vejo o Nelito a lançar em câmara lenta com um funil pontiagudo a sair-lhe do nariz achatado pronto para com um ar simpático te chupar o sangue da felicidade enquanto dormes e és criança e as pessoas que se apinham ao teu redor zunem numa orgia de transpiração que escorre sancas abaixo e pinga a ficha-tripla que afinal tinha o botão ligado e um baque seco vindo da porta do quadro eléctrico ecoa no escuro do sótão como um tiro de caçadeira no meio do mato e espanta as melgas para os lados da intermitência encarnada do despertador e assusta o Nelito que nem acredita quando vê a bola ressaltar no aro ferrugento e cair fora.

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