De Sem Prego

"A economia fez o homem à imagem da mercadoria, atribuindo-lhe um valor de uso e um valor de troca. Um sustenta-o a ele e aos seus semelhantes, o outro fixa-lhe um preço, não em conformidade com aquilo que produza mas com a quantidade de bens de que se aproprie."
Raoul Vaneigem, A Economia Parasitária, 1999.
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A potente castração da criatividade vital administrada pelo trabalho assalariado abate-se sobre nós de forma especialmente cruel nos períodos de desemprego. Negativo do trabalho, o desemprego isola-nos e inutiliza-nos, na justa medida daquilo que esta mesma sociedade do trabalho define como isolamento e inutilidade.
Com efeito, finda a escolaridade, qualquer período em que nos encontremos desvinculados de um compromisso profissional traz no nome o indisfarçável cunho da ordem vigente. Senão vejamos, do ponto de vista social, demográfico e político, o que é um não-estudante que não trabalha? Um desempregado. A locução não podia ser mais expressiva. Mas procuremos sinónimos (se é que uma língua os tem, de facto) para «desempregado», e logo encontraremos na linguagem oficial expressões como «inactivo» e «parasita», igualmente inquinadas. Utilizar alternativamente «desocupado» não se revela opção válida. Há muito que as palavras foram economizadas.
Impotente para contrariar este sentimento exterior de isolamento e inutilidade, apercebo-me que até aqui andei a desaprender a viver. A escola foi simultaneamente o motor dessa engrenagem e a sua paisagem cúmplice. Custa-me até admitir que não há muito defendia que o maior problema do ensino era o seu desfasamento relativamente ao mercado de trabalho, que desta escola não saíriam profissionais preparados e por aí adiante. Além de rotundamente burro, proferia esses juízos olhando por entre as estreitas palas da sociedade do trabalho, essas que sempre nos vão dizendo, com autoridade e propriedade, que a escola está orientada, e assim deve ser, para abastecer de «capital humano» o «mercado» e as empresas. E assim deverá continuar (esta frase pode ser lida de duas maneiras, ámen).Uma vez sem emprego, o desocupado deve ocupar-se na tarefa de se reempregar. Ciente do seu estatuto de mercadoria, o desempregado deve tornar pública uma nobre ambição: ser comprado. Num mercado em que a procura excede largamente a oferta, o desempregado deve ser capaz de se diferenciar no meio da multidão. Importa, cada vez mais, ter uma marca. Isso mesmo, uma marca. Afinal de contas, uma mercadoria, um produto venalizado, tem obrigatoriamente de ter uma marca.
O empregador vai ao supermercado da agência de trabalho temporário e mira as prateleiras, apoiado no seu carrinho-de-compras. Enquanto consumidor, a sua decisão estará grandemente condicionada pelos rótulos de que os vários candidatos se revestem. Os mais coloridos, os mais apelativos, os mais trendy, mas também os mais em conta, os mais baratos - os mais consumíveis, enfim - serão seleccionados, comprados.
Numa lógica de procura e oferta diametralmente oposta à teoria do mercado-livre, e portanto muito próxima da prática desse mesmo mercado-livre, os não-comprados sobejam nas prateleiras. Empequenados à condição de mercadoria, ver-se-ão a pouco e pouco cobertos por uma denunciadora camada de pó, impossível de disfarçar, e que duplamente lhes trará uma redução do valor de troca e da auto-estima, essa que por sua vez já a tão pouco - quase nada - se vira diminuída, residual, dir-se-ia na linguagem de laboratório (e é de tal monta essa diminuição que só no lento coar de anos e ânus de escola poderia processar-se, pelo menos sem que gerasse uma reacção, um protesto). Naturalmente que é também lícito falar-se, nestes casos, em prazos de validade; ou não fosse de meras mercadorias que se estivesse falando.
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Nota: clique na imagem e, seguindo o link, desça até às questões 34 e 35, a propósito de "marca". A leitura crítica das restantes questões é igualmente aconselhada.

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