Apontamento

É muito difícil sustentar o fim do trabalho assalariado.
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Isto é um labirinto visto de dentro. Nada existe além destas paredes, para lá destas paredes espelhadas. Ao fundo de uma curva, nova curva; nova curva, novo espelho. E eu e tu reflectidos neste labirinto de espelhos. O já de si curto horizonte é assim encurtado: no horizonte nada há - à mostra - além do nós-reflectido, do nós-virtual, do nós que olhamos daqui e do nós que nos olhamos acolá. Vemo-nos de fora. Somos um espectáculo a que assistimos - mas de que não nos sentimos autores.
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Não digo que a saturação, frustração, etc., não sejam sentimentos comuns, partilhados, enfim, correntes entre as classes abaixadas. Mas daí a ser possível defender o fim do trabalho, daí a que consigas, primeiro, sustentar o Fim propriamente dito, e, segundo, o que para lá Dele viria, que alternativa, que organização social, que meio de sustento - bom, vai uma distância dos diabos.
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Quando acordei já estas paredes me cercavam, já estes espelhos me confundiam - com a verdade lá escancarada. Foi como se, acordando, jamais houvesse acordado (ou melhor: o despertar foi justamente o momento em que vi a mortalha em que crescera e me definira). Nado-morto, ressuscitado para viver morto (ou melhor: para morrer e tudo ter ainda para viver), para durar numa espiral de palavras. Vamos lá, que raio é viver?, senão uma palavra, senão uma puta duma miserável palavra? A vida, aliás, é só palavras: Liberdade,
Justiça,
Paz,
Amor, e no entanto eis-me eis-nos carente carentes de palavras que me que nos expliquem. Não!, não há poucas palavras.
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Com efeito, a defesa do fim do trabalho não comporta uma - diremos assim - solução extra-trabalho (credível). Tal talvez esteja já previsto no código do trabalho, ou parece. E quando falo dum código do trabalho falo dum código sem alíneas, duma entidade que não toma corpo num contrato lavrado, assinado e autenticado.
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Não, nada de pragmática parlamentar, compromissos em sede de concertação social ou peneiras & areias afins; isto é muito mais: vai muito mais além. Isto é um código invisível-indizível-impossível - mas sempre presente no nosso presente. É uma alma penada.

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