Elogio do Suicídio

A partir de certa idade, que não sou capaz de precisar, passei a acordar todos os dias com o suicídio à cabeceira. Nos primeiros tempos, não o nego, foi difícil. A primeira dessas manhãs foi com efeito dolorosa. Enfim, quiçá por humana fraqueza, decidi-me a adiar. Na segunda manhã, sendo o mesmo homem, novamente adiei. E assim sucessivamente. Desde então, todas as manhãs, umas mais ponderadas que outras, umas mais angustiantes que outras, decido-me a adiar uma vez mais o suicídio. As pessoas dizem-me que tenho pensamentos negros e que devia, isso sim, gozar a vida. E dizem-mo como se isto que faço não fosse uma claríssima declaração de vida, talvez a maior de todas. Anima-me um ponto, sobretudo: só estou vivo porque quero. A morte é uma decisão, um comportamento que depende da minha vontade. A vida não me pesa, uma vez que a morte não ma ensombra. Haverá atitude mais humana, estar pronto a pôr um ponto final na vida e, finalmente, decidir não o fazer, decidir viver? Se, por um lado, me dizem que eu, suicidando-me, estaria a provocar a morte, isto é, a interferir com uma pretensa ordem natural das coisas, senão mesmo divina, que dizer de um viver que, boamente, só acontece porque, ao deixar de lado a hipótese do suicídio, não o podemos evitar? Só morremos por acaso, e sempre o fazemos combatendo a fatalidade. Isto não se me afigura particularmente nobre, por mais que obedeça a uma qualquer ordem natural ou espiritual. (E com isto não desmereço, antes pelo contrário, a tão disfarçada fraqueza humana.) Além disso, não deixa de me espantar que a taxa de suicídio entre os velhos seja tão baixa, eles a quem, grosso modo, tão poucos motivos restam para ir decidindo viver mais um dia. Entre a falta de coragem e a presença da esperança explicar-se-á a coisa pela rama, ou pouco mais. Subjugados igualmente às religiões que rejeitam liminarmente o direito ao suicídio, as gentes acabam vivendo por falta de opção. Será nestes meandros que a morte se vê engrandecida. Afinal de contas, ela é aquela que põe cobro ao sofrimento físico e mental do moribundo, que, como isso não bastasse, ainda é granjeado com a absolvição derradeira nas bocas do seu mundo, em regra muito condescendente para com os amortalhados. Já a indiferença perante vida e morte a vejo com os olhos da admiração. O homem deve ser superior à sua própria mortalidade. A sua vitalidade, de resto, vai muitíssimo para além da sua finitude biológica. No fundo, trata-se de desmanchar uma carga supersticiosa que prende os movimentos humanos quando da morte se fala. Ou, pior ainda, quando se cala. Do meu ponto de vista, tão atado está aquele que se persigna e arrepia ao ouvir a palavra morte como aqueloutro que espalhafatosamente proclama o pensamento positivo e o carpe diem. Não vivemos só quando somos novos. Também temos de viver velhos. Ou melhor, em boa verdade, não temos que coisa nenhuma. Nem sequer viver.

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