Fragmentos VI

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Importa escrever, sem dúvida. Registar, imprimir, gravar, chama-lhe o que bem queiras. Nunca será obra acabada, nunca será imaculado, nunca será satisfatório - muito menos para ti próprio. Mas representa o momento em que o teu pensamento deixa de ser aquela nuvem difusa e, até para ti, semi-desconhecida - porque permanentemente mutável, imaterial - e se concretiza, ganha corpo e assume uma forma, uma primeira forma, que constitui uma base de observação, análise e avaliação, onde poderás voltar as vezes que forem precisas, que podes reler, riscar, reescrever - e, assim queira o deus que dizes ser teu, melhorar. Será sempre uma barreira só parcialmente ultrapassada, um percurso só aparentemente vencido. Aliás, as palavras dar-te-ão repetidamente a ilusão de que as dominaste - até à segunda leitura, quando te atiram em cara que o teu pensamento nunca será devidamente expressado: por incapacidade tua, por defeito do molde que usas, por tanta coisa, enfim. E, assim sendo, o teu pensamento nunca será realmente dado a conhecer. Isto será dizer que, em grande medida, não te reconhecerás naquilo que escreves, corpo perpetuamente deficiente que te confunde a noção de ti próprio, que, afigurando-se-te panaceia ou bússola, te adoece e desnorteia. Ou não? Não sei. Não saberei nunca.
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