No S. José

O som áspero do altifalante pontuava o ambiente de achaque do corredor onde, alinhados atravancadamente rente aos parapeitos sebáceos das sebáceas janelas em cadeirazinhas de plástico (dum cinzento sebáceo), os utentes – já devidamente moderados pela taxa – aguardavam pelas devidas chamadas. A conta-gotas, as colunas lá iam zunindo para convocar uns e outros dos aguardadores, os quais, com um trejeito e um gemido, lá se arrastavam com destino aos consultórios respectivos. Até que se ouviu, “Dona Maria da Expectação Monteiro, gabinete trinta e dois, Urologia”. Feita a comunicação, não se ouviu, contudo, o costumeiro sinal sonoro de fim de ligação. Permaneceu no ar o som do fru-fru da bata cerca do microfone, o estalar da caneta e do estetoscópio no tampo da secretária, a respiração compassada da senhora doutora. Uns tempos assim ficou, sem nova a assinalar, quando, de súbito, regressou a voz da médica, agastada, “Irra, que fedor que ficou aqui, será que esta gente não se lava”, e suspirou. E acrescentou, como que sussurrando, “Xii, e só me calham é velhos”. Um suspiro mais. Um momento de silêncio, a respiração abruptamente suspendida, e logo um atropelar de dedos de encontro ao bocal do micro, e a ligação violentamente interrompida. Por baixo das colunas do hall ficaram os rostos corados de pasmo, rubros de indignação, e as pessoas de umas para as outras, “Quem seria”, “Que descaramento”, e assemelhadas dúvidas e exclamações. Do coro que entretanto se gerara, uma voz feminina ergueu-se, num rugido, “Ai, ela vai ouvir umas boas”. A exaltada senhora, toda ela debroada de vermelho, blusa, pescoço e rosto, seguiu o protesto, de punho ameaçador em riste, “Ai, vai, vai”, e já alguns dos vizinhos amotinados em apoio e admiração àquela valente, e a rúbea cada vez mais estridente, “Isso é que era bom, isto somos o quê, lá por ser doutora” – e arrastava jocosamente a palavra, “dou-to-ra” – “diz o que lhe dá na real gana, ah, nem pensar”, e já arrancava alguns apupos concordantes dos demais. E foi então num corredor esbraseado, em registo de potencial motim, que surgiu, perfeitamente alheada e despreocupada, a desbocada e ameaçada doutora! À prometida descompostura, ao confronto latente, substituiu-se um silêncio de gelo no severo corredor de espera. Alguns desviavam até o olhar da pequena profissional de saúde com aparente vergonha, e ela lá seguia, fraca figura de facto, porém avolumada pela sua bata impecavelmente branca, porém engradecida pela refulgente placa identificativa sobre o coração, que funcionavam, assim parecia, como generosas fontes de impunidade e superioridade. A belicosa de há instantes exibia-se agora afrontada, mais encarnada que nunca, a ponto de rebentar. Não se lhe ouviu um pio. Aliás, não se ouvia o mais pequeno ruído, a não ser o dos passinhos rápidos da doutora no chão pegajoso, que cruzou incólume o corredor, tendo dobrado a esquina e desaparecido de vista sem sequer hesitar ou olhar para trás. Em sentido contrário, chegou uma funcionária da limpeza, uma negra cinquentona com os olhos vivos de quem já viu e viveu muito, solenemente acompanhada pela sua esfregona afogada de cabeça para baixo no balde bicolor com rodas. Estacou frente ao elevador enquanto o engenho subia pachorrentamente ao primeiro andar. A soberba mulher, atirando uma mirada fulminante ao redor, suspirou sonora e ironicamente, desaparecendo ascensor adentro logo de seguida. O silêncio acentuou-se. O ar cada vez mais rarefeito. Alguém engoliu em seco.

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