Monte de sarilhos

A crítica às palavras de D. Policarpo a propósito do “monte de sarilhos” em que as não-muçulmanas se metem ao casar com um muçulmano são a meu ver condenáveis (sobretudo) pelo que há de condenável numa qualquer generalização – e que é, além do mais, inútil. Não se pode crer que o recurso a generalizações acerca de um “outro” seja uma ferramenta para ajudar um “próximo”. Mais facilmente isso se explica numa lógica de “auto-ajuda” ou, por outras palavras, auto-promoção.
O cardeal-patriarca falava numa tertúlia no Casino da Figueira. Defendia uma posição e isto é, ironias e hierarquias à parte, sagrado. Penso que esta liberdade de opinião se deve estender aos meios de comunicação. Os mitos da isenção jornalística, das hard news, dos factos & relatos, e de todas essas utopias cheias de boa-vontade (ou nem por isso) que são o norte (ou desnorte) da comunicação social em Portugal (e não só), devem ser filtrados nestas apesar de tudo curtas-metragens que vão enchendo as prateleiras desse grande clube de vídeo que é o agenda setting, e quando uma revista como a Sábado faz capa com “Portuguesas perseguidas pelos maridos islâmicos” (22/01) é de afrouxar a marcha e pensar. Lendo a peça, uma ideia ganha forma: estão a ser descritos casos de violência doméstica em que o denominador comum é a religião do marido agressor (muçulmano) e a origem da mulher agredida (cristã, portuguesa, europeia, americana). Quanto ao resto da descrição, nada mais é que a repetição dos revoltantes contornos que caracterizam a relação-tipo de subjugação física e psicológica de um ser humano sobre outro a que nos reportamos na expressão «violência doméstica». Parece-me, portanto, uma associação forçada e irresponsável (e não quero com isto dizer que o jornalismo tenha de ser responsável), que não é isenta (e não quero com isto dizer que o jornalismo deva ser isento) e que, sobretudo, não é séria. Além disso, o que caracteriza estes maridos da peça não é a religião: é a estupidez, é a fraqueza – e um estúpido, um fraco não tem credo. E não tem credo da mesma maneira que não tem género, raça ou nacionalidade.
Pacheco Pereira, no referido número da referida revista, classificou as críticas às palavras do cardeal como um “hipócrita e dúplice” “policiamento” de linguagem que o “esquerdismo corrente” e um falso (?) “multiculturalismo” emolduram e justificam. Compreendo o que na sua opinião haja de rejeição de um certo kitsch que se instituiu e impôs nos pseudo-debates políticos publicados – mas, não só isso é a (aparentemente incontornável) contradição à volta da qual gira o paradoxo da liberdade de expressão, em que a nega à medida que a defende, como, por outro lado, remete para o entorpecedor rechaçar da crítica que Júlio Henriques registou como a expressão de uns pretensos brandos costumes que supostamente caracterizam a cultura portuguesa.
Há nas palavras de Policarpo outro aspecto que importa analisar: a simplificação excessiva de um assunto de grande complexidade. Mas, quanto a isso, como qualquer outro que arrisque dar a conhecer a sua opinião, o professor universitário terá cometido semelhante falha: “Israel ganhou de um ponto de vista táctico e, muito mais importante, do ponto de vista estratégico uma batalha contra o Hamas, ou seja, o Irão”.

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