Vírgulas

José Miguel Júdice provoca-me uma ligeira urticária. Este senhor, ex-Bastonário da Ordem dos Advogados (não gosto "da tradição francesa de continuar a dar os títulos a quem desempenhou funções de destaque"), tem o seu tempo de antena garantido no Público (e na Antena 1, etc.). Na edição de ontem do jornal diário, nas páginas finais, sob letras garrafais dizendo "Espaço Público" (algo dúbio este conceito de «espaço público»), o senhor José optou por falar de um tema que, diz ele, revela "uma mentalidade mesquinha e arrevesada que vezes de mais nos caracteriza": a cultura de excelência e o comportamento dos portugueses (a quem ele se parece referir, incluindo-se, com aquele "nos") perante a dita-cuja. Tema interessante e, até, pertinente nesta época de crises financeiras e prémios planetários ao amado-odiado CR7. Mas ainda que nos três quartos de página que ocupou outras coisas me tenham parecido afectadas por uma certa - o senhor Zé Miguel sabia do que falava - mesquinhice e arrevesamento (especialmente ter-se referido de forma crítica, logo no segundo parágrafo, à ocorrência de, segundo ele, os órgãos de comunicação não terem comentado - como deviam? - um "artigo importante" - importante...? - de Jorge Sampaio; ele que fez justamente o mesmo: "Merecia que aqui o fizesse [que comentasse o artigo de Sampaio], mas ao menos realço o facto"!), ainda que muita coisa me tenha soado a afectação balofa, dizia eu, o último parágrafo, que empresta o nome ao referido texto, "O exemplo do Vírgula", é que me parece estupendo. Transcrevo-o de seguida, na íntegra (o itálico é meu):
"A propósito, um excelente restaurante, o Vírgula, fechou. Os jornais culparam a APL por querer cobrar a renda devida. Ninguém culpou os portugueses por não o terem apoiado, almoçando e jantando lá, ajudando a viabilizar um projecto muito meritório. Claro que tinha qualidade, era elitista e arriscava criar gastronomia. Tudo pecados imperdoáveis."
Ora bem, muita pena que o Vírgula tenha fechado, realmente. Estou desgostoso. Andam a fechar fábricas a pontapé, empresas a monte, centenas de desempregados, especialmente em zonas com um mercado de trabalho muito estreito. Mas o Vírgula? Isso é que não! Quer dizer, pensando bem, parece-me lógico que seja fechado se não pagar a renda! (note-se que o proprietário fala em "desentendimentos" com a APL.) Ou com "elitista" o douto advogado queria dizer, como acontece nas altas esferas onde se move - com a destreza e a sapiência que se lhe reconhecem -, não ter tratamento igual perante a lei? Não, para ele, os portugueses é que não apoiaram o "projecto", "almoçando e jantando lá". Com efeito, não era o mais caro dos restaurantes, mas refeições numa média de 20€ por pessoa não é para todos os bolsos, especialmente se falarmos de bolsos portugueses. Bem sei que o senhor Júdice é português: mas não é um português comum - seja lá isso o que for: faz parte da elite (económica, claro). De resto, esta espécie de acusação lembra a brincadeira popular de, falando de um vendedor careiro ou de um produto inflacionado, dizermos jocosamente uns aos outros que "eles também têm contas para pagar". Pelo contrário, o autor parece atribuir o fecho daquele restaurante junto ao Tejo, paradigma de um pretenso comportamento nacional, a uma aversão folclórica à qualidade, à elite e à criação. Enfim.

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