A passadeira


Quando volto à superfície, ao topo da escadaria da estação do metropolitano, tenho uma passadeira controlada por semáforos luminosos. Todos os dias, sem excepção, encontro o sinal verde para os peões. Hoje, pela primeira vez, isso aborreceu-me. Senti a minha vida como que cronometrada. Pensei que isso é totalmente inadmissível e reagi conforme. Infelizmente, não me ocorreu nenhum gesto melhor que ficar parado no passeio, em desobediência àquele detestável homenzinho verde, debaixo do olhar entediado dos condutores. Assim que o sinal mudou, os carros arrancaram com a impaciência que os caracteriza, indiferentes à minha luta. Ali me quedei, enfiado, à espera que novamente o sinal ficasse verde para mim. Quando isso aconteceu, apenas cruzei a estrada. Em vão tentei justificar-me durante todo o restante percurso até ao emprego - "Não, aquele sinal não te permite avançar. Ele ordena-te que o faças."
Mais tarde, enquanto bebia um café numa pausa do trabalho, contei o sucedido a um colega meu. Descrever-lhe o sucedido reforçou no meu íntimo a sensação de ridículo, mas nem por isso deixei de me esforçar por fazer um relato o mais fidedigno possível. Surpreendi-me porém ao verificar que ele não atribuía nenhuma importância ao sucedido. Tinha numa mão o telemóvel e noutra o cigarro, que chupava distraidamente. Por fim, sorriu-me e, pondo uma entoação especial na voz, disse - "Sabes tão bem como eu que somos um animal que não pode sair à rua sem trela".

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