Bairro do Amor

"Os proprietários dessa terra trabalhadora e desses bandos de negros eram ociosos e ávidos cavalheiros de cabeleira ao vento, que habitavam enormes casarões voltados para o rio - sempre com um pórtico pseudo grego de madeira de pinheiro branco. Um bom escravo custava-lhes mil dólares e não durava muito. Alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Havia que tirar desses bens instáveis o maior rendimento. Por isso os tinham nos campos desde que rompia o sol até aos seus últimos raios; por isso exigiam das plantações uma colheita anual de algodão ou tabaco ou açúcar. A terra, fatigada e maltratada por essa cultura impaciente, ficava exausta em poucos anos: o deserto confuso e sujo de barro metia-se nas plantações."
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Perdoe-se-me a maçadora - de tão comprida - citação. Bem sei que até as cinco mais sensuais linhas de texto são um fardo insuportavelmente pesado ao cabo da jornada diária de trabalho. Mas já dizia o Guy Debord que nada de importante se pode dizer ao público poupando-o. E o Jorge Luís Borges - o citado - sempre foi dizendo que "ler é uma actividade posterior à de escrever: mais resignada, mais cortês, mais intelectual". O que vem à laia de consolação.
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Mas adiante. Sirvo-me da passagem do Atroz redentor Lazarus Morell (da História Universal da Infâmia) para emoldurar o que segue: nos princípios do século dezanove - tempo da passagem - a anos-luz do saque da Amazónia, da camada-de-ozono esburacada ou dos suicídios laborais na France Telecom, já a terra era estripada à sombra de um meio de produção ditado sobretudo pela caprichosa impaciência engordativa dalguns poucos.
Não se trata de desenterrar uma vez mais as raízes (de longe lançadas) da flora que selvaticamente rebenta hoje ao nosso redor, e por cima de nós; mas, isso sim, de uma vez mais sacudir o pó-de-arroz das correntes de pensamento (gosto da ironia da locução) vigentes, que, com um sorriso paternal, nos garantem que a democracia, o liberalismo e todas essas novas caras do capitalismo arcaico (agora kitado) são, mais que um meio para a Felicidade Derradeira, a Felicidade Derradeira propriamente dita - quando inversamente se resumem, como Garcia Calvo e outros disseram, a pouco ou nada mais que a incessante mudança de todas as coisas de molde a que todas as coisas continuem na mesma. E isso, em regra, é uma grandessíssima merda.
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Democraticamente, uma ideia todavia honesta assalta o espírito do eleitor-contribuinte: a de que é culpado pela criminosa condição a que se viu apoucado. Ideia que, fazendo das tripas coração, o E-C repele: num mimetismo da lógica laboral contemporânea, revolta-se contra os Outros (quanto mais indefinidos melhor), esses que, não obstante durarem tão miseravelmente quanto Ele próprio, são simetricamente orgulhosos quanto baste para repetir aos filhos o que ouviram da boca dos seus progenitores: chama-lhe puta, filha, chama, antes que ela te chame a ti.
Naturalmente que esta reacção, por mais honesta que seja (apetece dizer: tão honesta quanto a acção que a motiva), tem o dom de anular - por incompatibilidade mórbida - aquilo que de proveitoso poderia servir ao E-C, isto é, a consciência de que é o criminoso ele mesmo (mais que qualquer juíz ou sentença) quem tem na mão o divino poder de repor o que de mal foi feito.
O Clamence (d´A Queda do Camus) dizia: "quando todos formos culpados, será a democracia". Não deixa de ser estranhamente idealista a associação assim tão directa entre o indivíduo e o rumo da sociedade em que se insere, quero dizer: uma ligação entre o indivíduo e o seu próprio rumo. Mas há no meu íntimo um intermitente lado romântico que gosta de ter - mais que nos outros - esperança em mim mesmo.

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