Poça de água

Subitamente feliz, dei por mim a guiar o carro pela berma da estrada, onde algumas poças de água reflectiam com brilho as farripas brancas e agora inofensivas que vagueavam pelo céu. Entretinha-me a passar as rodas sobre as poças como se, em vez de rodas, calçasse galochas, como se, em vez de conduzir, caminhasse, e observava alegremente alheado o repuxo de água que subia para cá do pára-lamas, como, naquele dia em que a Avó Rosa me ofereceu umas galochas azuis, me divertia a saltitar de poça em poça a caminho da padaria e, depois, pelo largo da igreja até ao café do Carlos. Nesse dia, que, como hoje, estava de chuva, vira-a maravilhado enfiar-me as calças por dentro do cano alto das galochas. Para teres os pés sempre secos, explicou-me. Eu percebi exactamente o que ela quis dizer: para saltitares de poça em poça.
Subitamente feliz, foi como se a Avó Rosa me tivesse acabado de calçar as galochas novas e mas tivesse posto por cima das calças para que eu andasse a saltitar de poça de água em poça de água, indiferente a todos quantos se cruzassem comigo, gigantes sem cabeça a quem apenas vislumbrava as pernas de relance, tendo como fundo a voz sorridente da minha avó a pedir desculpa pela minha alegria desmedida a essas pessoas afinal conhecidas de todos os dias. Foi como se de um salto tivesse molhado mais um gigante amigo da Avó Rosa que dei por que acabara de encharcar um rapaz da minha idade que ia no passeio, que foi gesticulando no meu retrovisor até se transformar num ponto indefinido no meu passado. Tive pena dela, mas segui, ainda feliz.
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Acordei mal-humorado. Não passara bem a noite e o dia amanhecia-me com dores de cabeça e pescoço. Hoje estás de folga, vê se te animas, disse-me uma voz desconhecida vinda alguras dentre uma orelha e outra. Depositei-me debaixo do chuveiro, desejoso que a água quente me descongelasse a infelicidade. Por um momento vi-me envolto numa nuvem cálida de vapor e a infelicidade parecia acenar a bandeira branca. Mas foi já todo ensaboado que dei por que a água arrefecia rapidamente. Atirei um soco na coxa: desde há dois dias que adiava, por motivo nenhum, ir buscar uma bilha nova de gás.
Acordei mal-humorado e mais quilhado fiquei por ter de tirar a espuma do corpo com água fria. Quando me abracei à toalha, os meus ouvidos estalavam, gelados. Vesti-me e saí. Tentava a todo o custo buscar inspiração no dia: não podia, pura e simplesmente, gastar a fugaz folga com o burro amarrado. Cá fora, porém, o cenário não era diferente: o céu negro, carregado, e a atmosfera fria, cortante. Contrariado, dei o primeiro passo para o cemitério. É uma rotina que cumpro religiosamente: visitar a campa da minha avó logo pela manhã nos meus dias de folga. Todo o caminho ruminei nas minhas frustrações profissionais, nos meus falhanços vitais. O chefe mostrava-se cada vez mais ignóbil. O homem parece orgulhar-se de ser uma nulidade perfeita. O que mais me revolve os intestinos é o facto de, no trato pessoal, não ter nada que lhe posse apontar. O homenzinho distribui passóbens assim que chega ao escritório, sorrindo lá dos píncaros das hierarquias cósmicas a sua consagrada chulice. Cá de baixo, mio-lhe um bom-dia nem por isso sonso: em abono da verdade, não lhe desejo mal; o pobre não passa do cagalhoto traiçoeiro no passeio dos meus dias.
Acordei mal-humorado, e assim me mantive até ultrapassar o imenso portal de ferro forjado do cemitério. Mas a aproximação à campa da minha Avó Rosa sempre tem em mim um efeito mágico. Imediatamente me sinto mais calmo e feliz. Olhei-a por uns minutos, não sei ao certo quantos, e foi já desanuviado que me vi dando o primeiro passo para o café, segunda paragem da rotina de folga a que me dá gosto obedecer. O céu, com efeito, limpara: apresentava agora apenas umas farripas brancas e inofensivas, que as poças de água na estrada reflectiam com brilho. O frio todavia apertara, mas caía agora que nem ginjas: a envolvência morna da gola do casaco era a extensão do calor dos lençóis que abandonara a custo há coisa de uma hora. Seguia subitamente feliz, quando um filho-da-puta passou com a roda do carro sobre uma poça de água junto à berma do passeio e me encharcou da cabeça aos pés. De olhos chispantes, fiz-lhe um manguito do tamanho de um pinheiro. O boi, num carro que então notei ser igual ao meu, seguiu, indiferente, até desaparecer no meu horizonte.

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