Curta-metragem: Cenário

Onde me leva esta carruagem?, e a mulher dos olhos sulcados de cinzento estranhou-me. Não fosse eu maluco, optou por não me dizer nem uma nem duas. Então abri o livro e retomei onde deixara: o herói aprontava o salto sobre um rio onde piranhas e jacarés lambiam os beiços na ânsia dos bifes das pernas e da barriga. O comboio arrancou e a cidade passou-me diante dos olhos entrecortada pelas janelas quadrangulares da composição como uma antiga fita de cinema mudo: ritmada e oníricamente. Sorri para a mulher dos olhos cansados. Ela deitou-me uma mão sôfrega às virilhas ou então fui eu a sonhar. Nisto já o herói deixara para trás as piranhas e os jacarés famintos e segurava nos braços de pedra o corpo leitoso de uma morena boa de carnes. O comboio parou num apeadeiro triste e riscado com um solavanco de orgasmo. A cidade era agora, na moldura metálica da janela quadrangular, uma fotografia de exposição: um adolescente magro ou de roupa larga jazia sentado no topo dum muro de cimento em bruto e, de cotovelos esquecidos nos joelhos salientes, fixava melancolicamente a gravilha junto aos carris. Voltei-me para a mulher dos olhos ensombrados e perguntei-lhe: onde nos leva esta carruagem? Ela finalmente falou: o tempo não está para futuros, trate de esquecer o colorido que a cidade podia ter se. E nisto embargou-se-lhe a voz. Pousei-lhe uma mão no ombro precário e ela não a sacudiu. Voltei ao livro e vi que o herói e a morena se confundiam já num laço de pernas e suspiros. Já não me recordava se havia tirado a mão do ombro da mulher dos olhos, pelo que fui vendo ao longo do braço onde a tinha. Foi quando notei que a mulher olhava a cidade através dos vidros sujos das janelas quadrangulares. Quase lhe sussurrei junto à gola do casaco: vamos sair na próxima estação.

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