Do "Polvo", ou Como ceder ao agenda setting

O "esquema" (1) "em que está directamente envolvido o Governo para interferência no sector da comunicação social" (2), nomeadamente "o controlo da estação de televisão TVI" e "do jornal Público" com o fim de "proceder ao controlo das notícias publicadas com interferência na orientação editorial" (3) destes órgãos de imprensa, acerca do qual "tomou-se conhecimento e reuniram-se indícios consistentes de situações que, (...) a confirmarem-se nos seus contornos, representam um sério atropelo aos mais elementares princípios por que se devem nortear os Estados democráticos" (4), não deveria nunca ter saído da esfera judicial. Este «esquema» ou "plano" (5) não é de natureza política.
Claro que, a partir do momento em que o Procurador-geral da República e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça invalidam este caso no âmbito judicial, ele deixa de ser, formalmente, do âmbito judicial. Mas, como diz José António Saraiva, director do Sol, "não entra pelos olhos dentro que é isso mesmo que está em causa?"
Uma vez habilmente reduzido a mero problema político, este assunto serve apenas intrigas e questiúnculas partidárias. A própria criação de uma Comissão de Ética, mais do que perfeitamente inútil, corporiza a derradeira absolvição dos criminosos por julgar - através de mais confusão repetida e de mais repetições confusas. Um pouco na lógica da velha estratégia do vencer pelo cansaço, sendo que «vencer» significa «gerar indiferença» - na opinião pública, bem entendido.
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Afigura-se-me fundamental andar para trás no tempo, mais precisamente até ao dia 12 de Junho do ano passado, data de um relatório de Teófilo Santiago, Director da PJ de Aveiro e coordenador da PJ no processo "Face Oculta", onde pela primeira vez foram registadas as suspeitas. Nele se lê que existiam "nos autos indícios claros que a administração da Portugal Telecom, por determinação, solicitação ou desejo manifestado por decisor político de primeiro nível, (...) iniciou e desenvolve um processo (manifestamente marginal e que se quer manter clandestino) de aquisição da TVI, com o objectivo assumido de tomar posição dominante e alterar a orientação daquela estação televisiva, que entendem hostil aos seus interesses políticos".
Lê-se ainda que no decorrer da investigação se haviam determinado as "formas de aquisição e respectivas operações necessárias (...) a «proteger» a verdadeira identidade da entidade compradora e, assim, evitar os «incómodos» que resultariam de ela se tornar conhecida e naturais juízos quanto aos méritos, oportunidade e objectivos do negócio".
Este relatório passou ainda pelas mãos de um procurador e de um juiz. Ambos consideraram que os indícios recolhidos eram suficientemente sólidos para dar seguimento a um processo autónomo. Esses intentos foram porém cancelados pelos dois responsáveis máximos do sistema judicial.
Naturalmente, a histórica e constitucional Separação de Poderes (que consta no Artigo 2.º, Estado de direito democrático, da Constituição da República Portuguesa) afasta qualquer dúvida que tal decisão - e, já agora, a forma algo estranha como foi transmitida - pudesse eventualmente gerar no espírito dos que menos têm e menos podem. De resto, a credibilidade inabalável das duas sumidades em questão reforçaria em definitivo essa ideia. Mas o Ministro da Justiça sentiu-se na obrigação de vir proclamá-la - à credibilidade inabalável - em público, numa dessas declarações às televisões que ultimamente tanto se tem visto. Lá está: separação de poderes.
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Como mais abaixo se poderá confirmar, quando descrevi o «plano» que a manchete do Sol apodou de "O Polvo", fi-lo recorrendo unicamente às palavras utilizadas por um director da PJ, um procurador e um juiz, sempre em circuito interno e formal, evitando assim reproduzir quaisquer imprecisões ou exageros jornalísticos que pudessem eventualmente pôr em causa a insistência numa tecla que, não sendo inédita no pós-25 de Abril, e talvez por isso mesmo, deveria produzir uma reacção judicial, política e, sobretudo, popular, muito mais efectiva e violenta.
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(1) Expressão empregue por Armando Vara em 21-06-2009, referida no 1.º Despacho do Procurador João Marques Vidal, em 23-06-2009.
(2) No 1.º Despacho do Procurador JMV, em 23-06-2009.
(3) Na autorização do Juiz António Gomes, em resposta ao requerimento do Procurador JMV, em 29-06-2009.
(4) No relatório do Director da PJ de Aveiro, Teófilo Santiago, em 12-06-2009.
(5) Termo utilizado pelo Juiz AG, em 23-06-2009.

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