Quarto minguante

Quando realizamos que o álcool é um analgésico e não um vício, uma ajuda e não uma camisa-de-forças, um miradouro e não um mau caminho, então sim, e finalmente, compreendemos. Não nos precipitemos, porém: compreender não implica saber explicar. Aliás, o mais certo será justamente a compreensão chegar até nós sozinha, como uma mulher insinuante que aborda os nossos restos mortais sepultados no tampo do balcão do bar à hora de fechar. A compreensão é atrevida, atira-nos logo Gosto de ti, borracho. Somos uma merda, e, se não for pelo estômago, é pelo ego que nos quilham, que nos arpoam o lombo. E a compreensão é sabida: sabe bem que isco lançar. Vem sozinha quando sozinhos estamos, quando asfixiamos de solidão, quando treslemos de tanta incerteza, quando transbordamos de tanto gin. Ferra logo Gosto de ti, borracho. E acrescenta Vi-te aqui sozinho e pensei. E segue dizendo não sei já o quê, que quando dei por mim era de manhã e estava estendido nuns lençóis brancos e ruços de pensão, tendo ao meu lado, dormitando ainda, um monte acastanhado e indefinido de vomitado. Bom dia, disse-lhe, e levantei-me para mijar.
Quando compreendemos: é bom. É bom de verdade, como dizem os brasileiros da minha cabeça. A compreensão, sem embargo, não é uma condição absoluta ou inata: é uma condição humana, e portanto fraca, precária. A compreensão é precária como os joelhos de uma mulher. É precária como o homem do Jogo do Chinquilho do Ruy Belo: uma certa malha arremessada por acaso à vida e viva na precária trajectória antes de caída. É por isso, de resto, que a aprecio tanto: um gajo não gosta de compromissos com gajas que gostam de compromissos. E a compreensão é uma mulher. Uma mulher que nos aborda quando conversamos com a solidão, quando lhe pagamos mais um copo (o último) e o bar é um porto deserto de cadeiras para o ar. Ela sussurra-nos sem rodeios Gosto de ti, borracho, enquanto nos passa a mão leve e suave pelo cabelo e ao longo da cara. A compreensão toma-me como sou, em toda a extensão da minha decadência. Não me censura a bebedeira. A barba por fazer. A camisa amarrotada. Tanto assim é que, quando diz Gosto de ti, borracho, não sei até se não estará antes dizendo Gosto de ti borracho. Diz: vi-te aqui sozinho e pensei. O rapaz na recepção perguntou-me se o quarto era só para uma pessoa. Achei melhor dizer que sim, que era só para mim que vinha sozinho. Compreendi que ele não dera por ela, que entretanto devia ter subido discretamente para os quartos. Enquanto flutuava aos tropeções escada acima, imaginava-a no quarto: a aguardar-me.
Quando bebemos muito, quando pensamos muito, quando estamos muito sós, quando bebemos muito: conhecemos as coisas. A primeira é a solidão. Conhecemo-la. Nunca vem só a solidão. Ao contrário do que se diz, é até bastante reinadia. E é esperta. Conversa muitíssimo bem. E escuta-nos atentamente quando lhe falamos dela. Conhecemos a bebida e o pensamento. Pensamos e bebemos todos juntos, sós com a solidão. A solidão apresenta-me a compreensão. Olá, muito prazer, como vai, e o mais que é costume nestas ocasiões. Estranho. Digo à compreensão A sua cara não me é estranha. Pergunto-lhe se não nos conhecemos já. Mas ela não liga, faz um gesto vago com uma mão e a conversa vai seguindo, o pensamento já nos levou para longe dali, fala de um quarto de pensão com lençóis brancos que esgaçam quando as moças dos andares preparam as camas. De méritos reconhecidos no que à tradição e hospitalidade diz respeito, o nosso Hotel será certamente do agrado de Vossa Excelência e seus acompanhantes, anuncia-me da mesa-de-cabeceira, cheio de cornucópias e berloques dourados, um papelito gasto que exibe ainda a meio as marcas da cinta que o prendia ao resto do maço. Afinal, nem só os homens têm cicatrizes. Nem só os homens transportam as marcas que lhes recordam donde vêm e do que são feitos. Pergunto-me se custará a este folhetozito observar-se nu ao espelho tanto como a mim. Deito-me e adormeço ainda vestido. Sonho que estou num bar e que só restam acesas as luzes do balcão, que me acentuam o cansaço do rosto cansado e o abatimento do corpo abatido. Subitamente, uma voz feminina sopra-me perto do pescoço: Gosto de ti, borracho, vi-te aqui sozinho e pensei.

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