002 Os Irlandeses votaram «não»? Sem stress - votam outra vez. Os Irlandeses rejeitaram o Tratado de Lisboa? Sem stress - votam as vezes que forem precisas. Até votarem bem.
Algo de errado se passa. (O quê, em rigor – de tanta coisa – nem sei bem. Mas) Digo-o com toda a sinceridade e determinação, com um arrufado sentimento de missão à mistura, como se dependesse unicamente de mim, num fardo hercúleo sobre os meus inexperientes ombros, todo o futuro da nação portuguesa: algo de errado se passa! Tenho que denunciar este crime hediondo. Tenho que trazer luz a esta sombria hecatombe, repetidamente dissimulada sob os focos de Suas Senhorias os estúdios televisivos, sob as tribunas de Suas Sumidades os nossos representantes, sob as indecentes camadas de pó-de-arroz de Suas Excelências as nossas vedetas! Ou muito me engano, ou todo este meu apreciável esforço já vem fora de tempo. Ou muito me engano, ou já nos encontramos afundados por completo no peganhento lamaçal da nossa corrupta e bafienta sociedade. Ou muito me engano, ou já é tarde de mais! Oh! e a virulenta censura a que serei sujeito e a perseguição mortal em que me verei protagonista, e o ataque rancor...
O dia amanheceu-se-lhe de bexiga por vazar. Estacou à borda da retrete: o olhar absorto perdido nas juntas dos azulejos azul-cueca. Por razão nenhuma deu uma guinada no olhar e então reparou numas farripas quase invisíveis de pintelhos muito familiares naufragadas à boca do ralo do polibã. Hoje é dia, terá pensado, enquanto sacudia os derradeiros pingos de mijo. Deu meia-volta e abriu a torneira do lavatório para lavar os dentes. Disse em voz alta para o espelho: Hoje é dia pá. Sabia os dias de cor e desde há muito que penugem aparada era igual a queca programada. Disse outra vez: Hoje é dia. Repetid as tamanhas palavras, porém, deu-se conta de que a presença daqueles pêlos negros na superfície sudada do polibã o incomodava. E muito. Rapadas no banho matutino, aquelas migalhas capilares eram um post-it onde a receptividade carnal da fêmea se declarava alto e bom som, lembrança dolorosa de uma líbido domesticada que o azucrinava. Indignou-se: Isto assim não pode ser pá (continuava a dir...
Estava decidido a escrever um texto com o título «Enquanto as ervilhas cozem». Tinha acabado de preparar o tupperware com o pequeno-almoço de amanhã, antes aquecera já o jantar do F., pusera na máquina-da-loiça as caixas da comida de hoje, dera volta à areia do gato, despejara no lixo um resto de bacalhau com broa precocemente azedado. (Ainda bem que não tinha feito – não fizera – mais nada antes, já não suportava mais um pretérito mais-que-perfeito.) Sentia-me capaz de uma dessas filosofias quotidianas que, sob a concretude dos gestos banais, descobre um substrato profundo e inspirador e belo. Enquanto as ervilhas cozem… Começaria assim, para situar o texto num plano paralelo ao das coisas comuns e daí elevá-lo, a princípio com candura, depois com rasgo, aos éteres da Poesia e da Arte. Começaria assim – Enquanto as ervilhas cozem – para sugerir uma imagem, um som de fundo, para que das palavras se desprendesse um travo de dia-a-dia que o Leitor logo identif...