Contextos: «um galão e uma torrada»

- Um galão e uma torrada, fachavôr.
A mulher que me atende esboça um sorriso simpático. É bexigosa e está ramelosa. Ao lado dela está plantado um gigante que sofre dum estrabismo atroz. Não move um músculo.
Sento-me na esplanada. (Novembro já se faz sentir.) O café do lado ainda está fechado. É segunda-feira e são 8h50 da manhã. Estou de folga há quase uma hora, desde as 8. À minha volta, pelo contrário, as pessoas que tomam o seu café dum trago estão prestes a, gozadas as respectivas folgas, recomeçar a nova semana de labuta. Estou, profissionalmente falando, de pernas para o ar.
(...)
A minha mesa é um telescópio. E um microscópio. É um telescópio-microscópio vermelho, com o símbolo da Olá debruado a branco.
(...)
Na mesa contígua, uma cinquentona com o aspecto chupado e ressequido duma rameira aposentada esgaravata placidamente uma narina com a unha do indicador, onde uns restos de verniz vermelho ainda dão um ar da sua graça. Com ela está um homem enfezado e nervoso, que segura pela trela uma rafeira nédia e impávida.
(...)
Nos bancos em frente, junto ao muro branco com uma lista azul que marca a fronteira do abismo que se ergue sobre a Praia dos Cus, está um casalinho adolescente protagonizando uma cena duma ternura e lindeza comoventes: abstraída do que a rodeia, a rapariga espreme com brio as borbulhas das costas do seu amante, que, abstraído do passatempo da namorada e do mais que o rodeia, abandona o olhar amorfo ao ecrã do telemóvel. Indiferente àquele romantismo hello kitty, uma gaivota, em voo rasante, larga uma bosta branca e leitosa ali perto, a escassos metros do casalinho, no azul do muro, indo depois pousar no topo dum candeeiro do passeio mais à frente, donde se pôs num berreiro e pêras, de goela arreganhada. Parece ter feito de propósito, porque já a moça largou as erupções, já o moço largou o aparelho, e estão agora conversando com as sobrancelhas arqueadas e o sorriso cúmplice do azar que teria sido acaso tivesse a gaivota decidido defecar uns poucos de metros mais para dentro, na direcção da estrada.
Dois homens de fato e gravata interpõem-se no meu campo de visão, aqui a dois palmos. Trinta e cinco anos de idade um, trinta e sete o outro, hão-de ambos andar pelo metro e setenta e seus setenta e poucos quilos. É engraçado que parecem querer combinar-se nas cores que exibem: cabelo castanho, fato cinzento, um; cabelo cinzento, fato castanho, outro. Nos vinte e quatro segundos que se detiveram aqui à minha beira, travaram um diálogo nos seguintes termos:
- Eu tenho três, vê tu bem, disse o primeiro.
- Eu recordava-me aqui há dias que o primeiro que tive era de oitenta contos, este de agora é de setecentos e cinquenta euros, disse o segundo.
- Eu só uso os meus no Natal, disse o primeiro.
- Oh, o meu quem o usa é só a minha mulher, praticamente, disse o segundo.
Dou conta agora de que foram vinte e oito, e não vinte e quatro como por lapso anunciei, os segundos que os dois homens de fato e gravata que falavam acerca dos seus cartões de crédito estiveram ao pé de mim.
(...)
O sol ainda só espreita por sobre os telhados. (Não aquece nem arrefece.) O pouco que bate nos transeuntes, fá-lo pelas costas, uma vez que, como já aqui se disse, a praia é a dos Cus, aqui as gentes, de olhos fixos no oceano, viram os rabos para Este. Há alguns minutos que estou de olhar fixado num ancião de bóina de tweed cinzenta. Entretenho-me a notar-lhe, neste leve contra-luz, os cabelos doirados do sol na nuca, as fibras arrepiadas da gola da camisa de algodão, o brilho metálico da haste, o bege seco do aparelho auditivo. Aprecio-lhe as sombras veneráveis das rugas que lhe escorrem rosto abaixo vindas dos olhos e do nariz, como sulcos de vivências, como pregas de amores e desgostos.
De repente,
Um pequeno espasmo do pescoço e do queixo,
Um ronco cavo vindo dos confins das entranhas,
E eis uma potente escarreta,
Densa e translúcida,
A saltar-lhe pastosamente dos lábios finos,
Onde deixou aliás o seu lastro a baloiçar à espera do velho lenço que as velhas mãos lá fizeram passar ao cabo do que me pareceu uma eternidade, que não consegui desolhar daquele lustroso fio de cuspo.
(...)
Nisto, passa uma mãe com a filha pela mão. Pelo olhar misto de desconsolo e ansiedade da bonita menina, adivinho que vão a caminho do jardim de infância. A mãe está gorda, de ventre deformado, com o cabelo desalinhado, a face com uma indisfarçável sombra de cansaço. Não obstante a energia que inegavelmente recebe daquela mãozinha que carinhosamente entrelaça na sua, aquela mulher é o recibo vivo do elevado preço da maternidade.
- Desculpe, depois pode trazer-me a conta, fachavôr?

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