Chuva

(Escrevo vergado a um céu que parece querer espalmar a pecadora nação com a palmatória do aguaceiro, que parece querer inundá-la, lavá-la de erros, um céu que bufa vendavais e jorra monções. Estou a metros do mar e, do espesso nevoeiro (este é, ao menos, visível), não o vejo. Através da montra (...), parece que os mares se ergueram e deram os braços aos céus, e a bocas ambas ventaram o castigo para os maculados actos das gentes. Isto não é novo, já se viu noutras eras e noutras fronteiras. Igualmente se viu noutros moldes.)
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A Justiça dos Céus não é com efeito tão morosa quanto a dos Homens deste país sobre o qual as chuvas e os ventos se têm abatido com uma severidade aterradora. Mas não deixa de ser torta. Os rigores do granizo e os silvos da nortada não se distribuem por igual entre ricos e pobres. Para estes últimos, desgraçados, a invernia agudiza-lhes as agudas misérias e furta-lhes os resquícios dos já furtados confortos. Já para os primeiros – nada de novo – as sólidas portadas fustigadas e as robustas telhas surradas aconchegam-lhes ainda mais a flanela dos lençóis e embalam-lhes ainda melhor o descansado sono. Sobre aqueles, precipita-se imperiosa e implacável. A estes, reforça-lhes a fortuna e o senso de impunidade.
Não existindo tal coisa como Justiça dos Céus, reservar-lhe ainda assim espaço é justamente fazer uso dela para lembrar que há na Justiça dos Homens injustiças que não são processos, que não são casos, que não são notícia. São só injustiças.

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